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Crítica

Em Django Livre, Tarantino faz western operístico e black power

Tarantino insere o público em seu universo | 28.01.13 - 16:26


                                                                                                                                  (Foto:divulgação)
 
Fabrício Cordeiro, especial para A Redação  
 
Goiânia - Lamento um pouco que o título brasileiro do novo Quentin Tarantino não seja "Django Desacorrentado". A tradução literal traria algo de poético e mítico, um perfeito casamento com a lenda germânica de Siegfried, herói em busca de sua amada Brunhilde.
 
O paralelo com a ópera de Wagner, baseada no personagem lendário, torna-se sugestivo em energia e tom. Em certo momento, o Dr. King Schultz (Christoph Waltz, a melhor nova parceria que Tarantino poderia ter feito) resume parte da história de Siegfried para Django (Jamie Foxx), ex-escravo liberto justamente pelo caçador de recompensas alemão após um súbito confronto de sanguinolência... animalesca, em vários sentidos.
 
Django Livre se passa em 1858, coladinho no começo da Guerra Civil dos EUA, época em que um negro livre no Sul era chocante, e um negro livre montado a cavalo era absurdo. Tempos em que "nigger" (geralmente traduzido como "crioulo", embora a palavra brasileira não faça justiça ao quilate ofensivo do original) era comum, termo expressado a cada cinco minutos de projeção, o que, já sabemos, voltou a enfurecer Spike Lee.
 
Como é de se esperar, Tarantino mais uma vez insere o espectador em seu universo de livre associação cinéfila. As referências, homenagens e releituras escorrem por todos os lados, explorando em maior ou menor grau a educação cinematográfica do público, que, uma vez cinema adentro, deverá se familiarizar (antes, durante e/ou depois) ainda mais com o western spaghetti, gênero já tão honrado pelo cineasta (Kill Bill, Bastardos Inglórios). O cabeça-de-chave da vez é o cinema de Sergio Corbucci, sobretudo Django (1966), de onde Tarantino toma emprestado não somente o nome e a música de abertura, mas também Franco Nero, o Django original italiano, em respeitosa participação especial.
 
Máquina enciclopédica de fazer cinema, temos aqui um autor que compreende como poucos uma infinitude de filmes que o precedem. Apropria-se de outros para fazer algo muito seu. Não muito raramente, surge algum teimoso para dizer que Tarantino é mera cópia disso ou daquilo, ignorando o hábito que o cinema, desde sua modernidade, tem de olhar muito bem para si mesmo. Ao seu próprio modo, Tarantino é um estudioso, assim como Scorsese ou De Palma, para nos atermos somente aos norte-americanos.
 
Essa cinefilia presente em seus filmes encontra respaldo na cinefilia clássica investigada por Antoine de Baecque (seu livro "Cinefilia", lançado pela Cosac Naify, é imprescindível para compreender a importância dos cinéfilos na história do cinema), atualizando-a sem receio algum, como na valorização do consumo no desenvolvimento da voz da cinefilia atual (entre outras coisas, À Prova de Morte é um engajamento via camisetas, pôsteres e diversos cultos a objetos). No cinema de Tarantino, existe uma ampla noção de erudição, que não se restringe ao que alguns insistem em tomar como "alta cultura". Tanto quanto um elo operístico, importa o que a cultura pop tem a oferecer, e o que filmes, gêneros, cineastas, enfim, cinemas desprezados têm de enriquecedor.
 
Não por acaso, Schultz fala do herói adotado por Wagner com o mesmo interesse que Bill (David Carradine) fala do Superman em Kill Bill. Ele encontra neste Django negro um novo Siegfried, que por sua vez tem sua própria Brunhilde (Kerry Washington), a ser resgatada de um fazendeiro escravocrata que, de tão metido a europeu (estaria aqui uma cotovelada nas desengonçadas noções de "alta cultura"?), prefere ser chamado de monsieur Calvin Candie (Leonardo DiCaprio, muito bom).
 
Django Livre, por sinal, envolve todo um banquete de sotaques que parecem ir além de carregados: são estilizados. A cada filme, Tarantino aperfeiçoa seu tato com o linguajar. DiCaprio explora isso em uma afetação que, nos pontos altos, pode lembrar Al Pacino. Curiosamente, o filme chega ao Brasil com várias cópias dubladas, o que deve ser experiência no mínimo bizarra.
 
O crescendo operístico é construído aos poucos. Relação entre Schultz e Django é digna de atenção: o ex-escravo, recebendo o sobrenome "Freeman" ("homem livre"), adquire conhecimento a cada cena. Aprende palavras novas, aperfeiçoa sua mira, lapida uma identidade - mesmo que para isso tenha de incorporar outros papéis - sempre com uma mão amiga e respeitosa do parceiro. Se os códigos e as morais entre homens que regem o western frequentemente envolvem o que ficou conhecido como bromance, Tarantino concebe um dos mais bonitos.
 
É notável também como a independência de Django floresce, especialmente após a chegada ao Mississipi. Há algo de destemido e inconsequente nesse personagem que tem, no fim da linha, uma vingança (tema caro a Tarantino) capaz de justificá-lo. Montado a cavalo, o que já configura um desafio por si só, Django se transforma numa lenda própria do Sul, diante de brancos e, mais importante, negros.
 
A galope, espingarda empunhada ao alto, o filme lhe reserva uma montagem engrandecedora antes do confronto final, uma das muitas cenas de violência extravagante. Cada vez mais Tarantino usa o sangue como uma pintura, um elemento de cor em relação amorosa com a fotografia. Sangue em algodão, sangue escorrendo por um cavalo, sangue explodindo no ar, visível, despudorado, coisa de quem controla a tela como quiser. Sangue é mise-en-scène.
 
O banho de sangue e corpos, aliás, pode ser visto como dividido em duas partes, assim como o filme se divide em antes e depois do Mississipi, onde se encontra a exuberante vilania de Calvin Candie e o longa toma certa distância do faroeste ao passo que encosta nos exploitations de escravidão (ver cena da retirada de Brunhilde de sua punição). No entanto, o brilhantismo de Django Livre talvez esteja na revelação de outro vilão, ainda mais significativo: Stephen (Samuel L. Jackson), o velho lacaio negro de Calvin, cúmplice da opressão de seus semelhantes. É nele que a câmera desfere um, dois, três ou mais closes assim que os heróis chegam à exuberante residência do fazendeiro. É Stephen o grande antagonista de Django, sugerindo uma obra que não pensa a "resolução" da escravidão (e, por conseguinte, do racismo) como um mero acerto de contas entre brancos e negros.
 
Herói, bandido e mocinha redefinidos, Django Livre termina, enfim, completamente black power. 

Comentários

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  • 06.02.2013 12:32 gilson ribeiro

    Tarantino parece ter levado ao limite a ideia de que o pastiche pode ser sim uma forma de expressão artística legítima. Em seu mais recente filme ele gastou quase 100 milhões de dólares para render homenagem ao western spaghetti (produções de baixo orçamento caracterizadas pela extrema saturação dos clichês do western). Mas Django Livre é na verdade um anti-spaghetti, se considerarmos que o gênero (ou sub-gênero) foi feito de filmes muito baratos onde os traços do western eram potencializados ao extremo exagero, enquanto que essa megaprodução busca assimilar com caríssimos recursos técnicos os maneirismos do faroeste à italiana. É o caminho inverso, então. Mas Tarantino não realiza simplesmente um pastiche do spaghetti, ele realiza, sobretudo, um pastiche de sua própria gramática cinematográfica, para realizar tudo aquilo que se espera de um filme de Tarantino. Violência tratada com hedonismo, humor burlesco, música pop, muitas referências a outro filmes e diálogos que se parecem razoavelmente com os melhores diálogos escritos por... Tarantino. Como sempre, cada seqüência é uma encenação bastante apurada, espécies de micro-contos, com os diálogos pontuando a tensão. Mas, apesar das magníficas interpretações, algo se perde no encadeamento destas encenações. Há um excesso de momentos apoteóticos – talvez para justificar a inserção de canções “bacanas”, tão características do diretor; por fim, um roteiro trivial de western (vingança, essencialmente) é esticado ao limite do suportável para que o diretor possa recheá-lo com muita “tarantinice”, inclusive fazendo uma participação especial das mais medíocres. Talvez seja mesmo louvável o empenho em “corrigir” a História (à sua maneira) iniciado em Bastardos Inglórios – ali o nazismo, aqui a escravidão. De todo modo, repetindo, ao tentar elaborar um pastiche de um subgênero cinematográfico o que Tarantino conseguiu foi fazer um mau pastiche de seu próprio cinema.

  • 06.02.2013 12:30 gilson ribeiro

    Tarantino parece ter levado ao limite a ideia de que o pastiche pode ser sim uma forma de expressão artística legítima. Em seu mais recente filme ele gastou quase 100 milhões de dólares para render homenagem ao western spaghetti (produções de baixo orçamento caracterizadas pela extrema saturação dos clichês do western). Mas Django Livre é na verdade um anti-spaghetti, se considerarmos que o gênero (ou sub-gênero) foi feito de filmes muito baratos onde os traços do western eram potencializados ao extremo exagero, enquanto que essa megaprodução busca assimilar com caríssimos recursos técnicos os maneirismos do faroeste à italiana. É o caminho inverso, então. Mas Tarantino não realiza simplesmente um pastiche do spaghetti, ele realiza, sobretudo, um pastiche de sua própria gramática cinematográfica, para realizar tudo aquilo que se espera de um filme de Tarantino. Violência tratada com hedonismo, humor burlesco, música pop, muitas referências a outro filmes e diálogos que se parecem razoavelmente com os melhores diálogos escritos por... Tarantino. Como sempre, cada seqüência é uma encenação bastante apurada, espécies de micro-contos, com os diálogos pontuando a tensão. Mas, apesar das magníficas interpretações, algo se perde no encadeamento destas encenações. Há um excesso de momentos apoteóticos – talvez para justificar a inserção de canções “bacanas”, tão características do diretor; por fim, um roteiro trivial de western (vingança, essencialmente) é esticado ao limite do suportável para que o diretor possa recheá-lo com muita “tarantinice”, inclusive fazendo uma participação especial das mais medíocres. Talvez seja mesmo louvável o empenho em “corrigir” a História (à sua maneira) iniciado em Bastardos Inglórios – ali o nazismo, aqui a escravidão. De todo modo, repetindo, ao tentar elaborar um pastiche de um subgênero cinematográfico o que Tarantino conseguiu foi fazer um mau pastiche de seu próprio cinema.

  • 28.01.2013 19:10 Hudson Rabelo

    Fabrício, me aluga não.

  • 28.01.2013 19:07 Átila Rocha

    Fabrício Cordeiro, você foi muito feliz nesse texto sobre o filme Django Livre... creio que você conseguiu exprimir a melhor crítica que já li sobre o filme... fiquei inquieto esperando seus comentários sobre a atuação de um ator específico até que no penúltimo parágrafo você traduziu bem a representação do que ele foi no filme... ao falar de Samuel Jackson... gostei do filme ... (pra quem achou exagerado - é Quentin Tarantino)e gostei da crítica... novamente, parabéns Fabrício.

  • 28.01.2013 18:08 Abílio Ticle

    Faltou dizer: Um toque nos racistas, negros e brancos, ao colocar um alemão no papel de defensor da liberdade e igualdade racial.

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