Goiânia - Nos últimos dias, a Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest), processo seletivo dos mais concorridos do país, ofereceu ao candidato como tema para sua redação “A Camarotização da Sociedade”. Tocou-me de forma sensível a escolha da questão em referência, já que reconhecidamente todos os assuntos que tratem da Fuvest têm repercussão nacional, devido ao desnudamento de uma realidade que nem todos perceberam ter se formado ao redor. Talvez pela forma sutil e palatável como tem sido construída.
A expressão “camarotização” tem sido utilizada por economistas e filósofos, dentre os quais menciono o professor da Universidade Harvard, Michael J. Sandel, autor dos célebres “Justiça – o que é fazer a coisa certa” e “O que o dinheiro não compra”, para designar o cenário social. Nele, o mercado tem ditado regras que sobrepujam outras regras de obediência anterior, comprometendo a integridade e corrompendo a relação do indivíduo com os bens de que cuida o mercado, dando a aqueles outros valores, distanciados da equidade e do civismo.
É a constatação de que o mercado e o comércio alteram o caráter dos bens, em uma era onde o triunfalismo de mercado coincide com uma época em que o discurso público se esvaziou consideravelmente de qualquer contorno moral e espiritual.
O comercialismo corrói o comunitarismo. Quanto maior o número de coisas que o dinheiro compra, menor o número de oportunidades para que as pessoas de diferentes estratos sociais se encontrem ou dessas coisas usufruam. Há uma clara divisão social, em acentuado distanciamento, promovido por essa divisão por caráter econômico.
É o que podemos ver quando vamos a qualquer evento de acesso permitido a todos (festas, shows, jogos em estádios ou ginásios etc.) e contemplamos os camarotes especiais, ou em situação inversa, observamos o resto do ambiente a partir dos camarotes.
O desaparecimento do convívio entre classes, outrora vivenciado nos ambientes públicos, representa uma perda não só para os que olham de baixo para cima, mas também para os que olham de cima para baixo.
Algo semelhante vem acontecendo na sociedade como um todo. Numa época de crescente desigualdade, a marquetização de tudo significa que as pessoas abastadas e as de poucos recursos levam vidas cada vez mais separadas (escolas, hospitais, moradia, transporte, entretenimento, influência política), camarotizando o estilo de vida contemporâneo. Isso não é bom para a democracia e nem, sequer, é uma maneira satisfatória de levar a vida.
A desigualdade social e o distanciamento entre as classes, mais evidenciados em países em desenvolvimento, são alimento para a camarotização. A tendência é que haja expansão desse cenário, já que estudos mostram que a riqueza mundial está cada vez mais se concentrando nas mãos de parcela menor de pessoas, concretizando o sectarismo social em quase todo o planeta Terra.
Sem nos esquecer do fato de que as classes mais altas ditam as regras de comportamento – via mercado - para as classes mais baixas, ocasionando situações como aquelas que vivenciamos há pouco tempo no país, os “rolezinhos”. Esses eventos nada mais foram do que uma tentativa dessas classes marginalizadas de se inserirem, ou ao menos usufruírem, dos bens da classe inserida.
Democracia não quer dizer igualdade perfeita, mas de fato exige que os cidadãos compartilhem uma vida comum. O importante é que pessoas de contextos e posições diferentes se encontrem e convivam na vida cotidiana, pois é assim que aprendemos a negociar e respeitar as diferenças ao cuidar do bem comum.
Queremos uma sociedade onde tudo esteja à venda, ou será que existem certos bens morais e cívicos que não são honrados pelo mercado e que o dinheiro não compra?

*Pedro Paulo de Medeiros é advogado criminal, conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil, presidente da Comissão Especial de Estudo do Direito Penal do Conselho Federal da OAB, membro da Comissão Especial de Juristas do Senado que elaborou o anteprojeto do novo Código Penal e do Instituto dos Advogados Brasileiros.