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Gismair Martins Teixeira

François Rabelais e Babette em dois etos

| 16.02.17 - 09:30
 
Goiânia - Na mobilidade de calendário que caracteriza a folia de carnaval, o ano de 2017 apresenta um distanciamento de dois meses e três dias entre a data comemorativa do nascimento de Jesus Cristo e as festividades de rei Momo. Ambas as festas apresentam etos bem particulares, alguns convergentes e outros divergentes.
 
O dicionário luso-brasileiro Priberam define a palavra “etos” em um de seus significados, pertencente ao campo da sociologia, como sendo o “conjunto dos costumes e práticas característicos de um povo em determinada época ou região”. Naturalmente, os verbetes dicionarizados são muitas vezes restritivos, embora permitam também uma abertura em seu leque conceitual.
 
No último dia 9 de fevereiro, o Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Seduce-GO, em parceria com o Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Performances Culturais da Universidade Federal de Goiás, promoveu a oficina “Alegrias, Teatro e Alegorias: Pantagruel e Rabelais”, que foi realizada nas dependências do Ciranda da Arte pela Dr. Ingrid Koudela, da UPS. A atividade apresentou em sua proposta o estudo em torno do gesto teatral em sua multifacetada perspectiva, englobando as demais manifestações artísticas, como a dança, a música e a literatura.
 
A obra de François Rabelais, motivadora da oficina de Koudela, contempla em seu conjunto elementos simbólicos representativos do etos próprio do carnaval, constituindo-se extensivamente como uma sátira ao período em que foi publicada, o século 16. Em sua tese de doutorado sobre a importância da produção de Rabelais, intitulada “A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Franços Rabelais”, o filósofo russo, Mikhail Bakhtin, apresenta importantes informações sobre o processo constitutivo do etos carnavalesco medieval que ainda encontram ecos nos dias atuais.
 
Ao longo do estudo bakhtiniano sobre a obra de Rabelais são ressaltados aspectos culturais importantes, que oscilam entre o sagrado e o profano. Dentre os sete capítulos de sua tese que trata do contexto medieval, o de número quatro recebe o título de “O banquete em Rabelais”. Conforme Bakhtin, “Gargântua” e “Pantagruel” são as obras rabelaisianas que mais encarnam no Renascimento o motivo do carnaval, que pairava no ar durante esse período histórico. Sobre o banquete no medievo, afirma Bakthin em sua tese: “As imagens do banquete associam-se organicamente a todas as outras imagens da festa popular”.
 
O simbolismo de Babette
Um dos motivos, dentre os muitos, pelos quais a cidade de Paris se tornou célebre, é a sua requintada culinária.O vencedor do Oscar 1988 de melhor filme de língua estrangeira aproveita bem essa fama parisiense. “A Festa de Babette”, produção franco-dinamarquesa de 1987, apresenta em seu roteiro a história de uma refugiada, Babette Harsant, que chega à costa da Dinamarca no ano de 1871 em fuga de sua região natal, que se encontrava em conflito bélico.
 
Recebida para trabalhar na residência de família extremamente religiosa e que exercia uma liderança local, Babette ali se instala durante muitos anos, em um convívio que muitas vezes é marcado pela desconfiança das filhas já idosas do antigo líder religioso da pequena localidade. Ao ganhar um vultoso prêmio lotérico, Babette convence os principais nomes da região a aceitarem um banquete a ser preparado por ela. De austeros hábitos, eles hesitam a princípio, pensando tratar-se de uma festa de despedida.
 
Após gastar toda a soma do prêmio nos ingredientes caríssimos, Babette serve uma refeição quase mágica, que tem o condão de despertar emoções aparentemente sepultadas na alma daquelas pessoas. Aos poucos, todos se soltam, saboreando a refeição como se saboreassem o próprio dom de viver, esquecendo-se momentaneamente dos rigores ascéticos de uma religiosidade quase fanática.
 
Baseado no roteiro do conto escrito por Karen Blixen, o filme dirigido por Gabriel Axel representa um instigante desdobramento simbólico e eufemizante do etos dos personagens glutões de François Rabelais, os gigantes Gargântua e Pantagruel. “A Festa de Babete” simboliza o encontro amigável entre o sagrado e o profano, pois os prazeres da mesa se sobrepõem a desconfianças mútuas, unindo as personagens pela sua humanidade acima de qualquer diferença e concepção de vida; ou seja, o etos idealizado da festividade natalina.
 
Logo, o breve hiato de tempo que há entre o natal e a festa momesca faz pensar na mesa farta do banquete natalino como um momento de acúmulo de energias que serão gastas nas folias de carnaval evocativas do que é glosado por Rabelais no conjunto de sua obra. Mais que isto, sugere também a possibilidade de pensar-se no momento carnavalesco como uma festa em que a alegria de um não venha a representar a tristeza de outro, como timidamente algumas campanhas publicitárias desse período do ano tentam sugerir.
 
*Gismair Martins Teixeira é doutor em Letras pela Universidade Federal de Goiás; professor do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Seduce-GO.

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