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Nádia  Junqueira
Nádia Junqueira

Nádia Junqueira é jornalista e mestre em Filosofia Política (UFG). / njunqueiraribeiro@gmail.com

Ora, pois!

Entre calcinhas e café: a ditadura para mim

A respiração que precede um suspiro preocupado | 01.04.14 - 15:21

Goiânia - Ditadura surgiu pela primeira vez para mim em meio a uma confecção em casa de lingeries. A mim, me interessava as calcinhas infantis. Entre algodão, bordados de ursinhos e um clima de brincadeira eu ouvia falar dessa coisa que me parecia ser meio dura. Marcantônio Dela Corte era quem estava por trás da confecção. Grande amigo do meu pai, as nossas famílias se encontravam aos fins de semana, quando os adultos se reuniam para tomar café. 
 
Eu, meus irmãos e as filhas dele brincávamos em meio às calcinhas. Marcantônio e sua esposa Matilde as costuravam, organizavam e levavam a sério aquilo que a gente levava na brincadeira. Foi com elas que ele restabeleceu sua vida e criou suas filhas depois que a democracia foi retomada. Sua formação formal como historiador foi impedida durante os anos da ditadura e a saída foram as lingeries. Enquanto a gente brincava, eu ouvia Marcantônio conversar com meus pais. Ele sempre falava daqueles tempos como se tivessem acontecido ontem.
 
Aos ouvidos de uma criança, aquela história de ser jogado em um camburão e viajar horas e horas no escuro, sem poder sair nem para fazer xixi e chegar a uma prisão em Juiz de Fora, era quase história de terror. Ele era muito inteligente, era essa a impressão que eu tinha. Meu pai repetia orgulhosamente como ele havia lido dezenas de livros na prisão. E também nos ensinava a respeitá-lo como quem deve respeitar algo mais do que um tio. Ele era a história viva. 
 
Eu não entendia muito bem porque ele havia sido preso. Sabia que ele era um homem bom e não tinha feito nada de errado. Mas uma coisa eu entendia. Ele tinha sido preso porque estava agindo por alguma coisa boa pro Brasil. O que me fazia, automaticamente, entender que ditadura não era coisa boa.
 
Foi nesse ambiente que eu ouvia que esse mundo não está pronto e estava em nossas mãos fazê-lo melhor. Que tinha muita coisa por fazer. Foi em meio a calcinhas e café que comecei a ouvir que havia muita injustiça. E que as coisas não estavam prontas e superadas.
 
Isso tem uns 20 anos. Marcantônio continua a falar sobre o que houve como se tivesse sido ontem. Pelos detalhes que sua memória guarda. Pela indignação que ainda brilha em seus olhos. Hoje ele não costura mais calcinhas. É presidente da Associação dos Anistiados em Goiás. Hoje ele briga para que a verdade venha à tona, como parte da Comissão da Verdade em Goiás.
 
Por causa de Marcantônio e por causa de tantos outros, eu estou aqui escrevendo para vocês com toda tranqüilidade que não vão tirar meu texto do ar ou bater na porta da minha casa. Por conta da coragem deles, leio, estudo e escrevo o que quero. Posso brigar por qualquer causa sem temer ser torturada. 
 
Não deve ser à toa que Marcantônio, que pagou com sua liberdade e sua juventude pela democracia, ainda esteja em ambientes brigando por mais justiça. A democracia nunca é nem será algo conquistado e acabado. Ela significa, justamente, o constante exercício. Ela implica envolvimento, participação, capacidade de conviver com as diferenças. Ela implica, sobretudo, que não deixemos de lado a política para dar conta de nossas vidinhas. 
 
Se respiro com alívio e com gratidão por viver hoje a democracia, a essa respiração precede um suspiro preocupado. Nada é tão ruim que não possa acontecer de novo. Basta a gente deixar de lado. Basta não nos importarmos em compreender o que aconteceu. Basta deixar a história ir para debaixo da terra junto com aqueles que poderiam ajudar a construir algumas linhas diferentes das que lemos na escola. Basta dizermos: isso não é problema meu.
 
Por isso temo por essa tranquilidade com a qual vivemos hoje. A ditadura, que para mim surgiu como descrevi acima, para muitos da minha geração não significa praticamente nada. Uma coisa do passado. Uma ditabranda, como quem lê por aí. 
 
Filhos da democracia, gozamos de liberdade e ditadura é algo mal-e-mal construído em nosso imaginário. Temo pelos filhos da democracia que acreditam que esse estado que vivemos é algo óbvio, natural. Tão natural que não precisamos nem mesmo ter cuidado. Ou discutir algo que já se passou. Gente que enxerga história como uma melancolia inútil.
 
Sem a compreensão do que houve, não é difícil que tudo se repita. Por trás da rotina de cada um, a luta pela manutenção pela democracia não para. O fim da ditadura é um exercício diário. 
 
Por exemplo.
 
Em resposta ao direito de nos manifestarmos e contestarmos a forma como os direitos e a coisa pública são tratados em nosso país, recebemos uma lei antiterrorismo. Mais uma forma de cercear a liberdade conquistada a duras custas. Como uma maneira de freiar os brasileiros, temendo que eles façam bagunça na presença de visitas em casa, parlamentares (isso, aqueles que a gente mesmo elege por meios democráticos) têm a genial ideia de aumentar a repressão. 
 
Inventa-se um castigo maior para quem ousar falar em voz alta que, enquanto essa Copa bilionária é executada às mil maravilhas, o Brasil segue arrastando problemas sócio-econômicos. A Copa não pode dar errado. Nem que o preço disso seja fazer uma pequena poda à liberdade dos brasileiros. Elevam-se as manifestações ao status de terrorismo e qualquer repressão está justificada. Antes, durante e depois da Copa.
 
Ora, conviver com o barulho é sempre mais difícil. Enfrentar o debate é mais complicado. Receber as manifestações como uma prática natural à democracia é mais difícil que proibi-las. Saber lidar com a violência nessas manifestações e encontrar formas de combatê-la sem impedir o direito de sair às ruas e contestar o poder público, sem criminalizar a ação como um todo é, sim, um exercício que a democracia exige.
 
O projeto de lei está na pauta e ainda pode ser votado no Congresso Nacional até a Copa. Esse é apenas um dos sinais de que não há nada conquistado e pronto. O fim da ditadura e o início da democracia ainda vivem numa lei de anistia que favorece os torturadores. Vive na história que a gente desconhece que vai debaixo para terra a cada morte de algum envolvido na ditadura.
 
O fim da ditadura e o início da democracia vivem ainda em cada defesa aos justiceiros. À justiça feita pelas mãos da polícia. A cada militar que ainda ocupa (paradoxalmente) uma cadeira no legislativo defendendo a volta da ditadura. 
 
Vive em uma instituição bancária que dá o nome do dia de hoje de “Revolução”. Vive na população indígena que, sem reconhecimento, continua a lutar pela não-extinção em uma briga travada com latifundiários e também com Estado, pelas mãos da polícia. Vive nas comissões de direitos humanos ocupadas por parlamentares que sustentam e buscam institucionalizar o não reconhecimento do outro – o outro gay, negro, índio, mulher.
 
Marcantônio já deveria estar descansado. Desejaria que ele estivesse dedicado somente a escrever uma história que a gente ainda desconhece. Mas ele ainda está envolvido com um fim e um início: o constante exercício da democracia. Um processo que nunca tem fim. É diário, constante e exige que nunca cochilemos. Entre calcinhas e café aprendi: a história não tem fim. O fim da ditadura e o exercício da democracia estão nas nossas mãos: de quem não tem ideia do que é ter a vida limitada (ou ceifada) porque acredita em justiça. 
 

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Nádia Junqueira é jornalista e mestre em Filosofia Política (UFG). / njunqueiraribeiro@gmail.com

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