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Nádia  Junqueira
Nádia Junqueira

Nádia Junqueira é jornalista e mestre em Filosofia Política (UFG). / njunqueiraribeiro@gmail.com

Ora, pois!

O Haiti de perto

| 07.12.14 - 18:23 O Haiti de perto (Foto: Nádia Junqueira)
Porto Príncipe“O que vocês foram fazer no Haiti?”. Foi a pergunta que mais ouvimos quando contamos sobre nossa experiência. É realmente verdade que não é, de forma alguma, um destino bacana para turismo. Mas também é verdade que as razões pelas quais as pessoas gostam de viajar nem sempre são as mesmas. Certamente eu e Juliano compartilhamos das mesmas de muitas pessoas. 

Mas o que talvez a gente tenha e das quais poucas pessoas compartilhem é nossa disposição, curiosidade e vontade de conhecer diferentes realidades e culturas, não importa o quanto isso fuja de nosso etnocentrismo. O quanto desconfortável pode ser. O quanto esteticamente pode não ser aprazível. Que haja riscos e que não haja prazer ou descanso. E assim decidimos conhecer o Haiti: o país mais pobre das Américas.
 
 
Até nos aproximarmos da fronteira, de fato, é tudo expectativa. Apenas. Cenários mal construídos no imaginário. Do que os romances e livros de história contam do país. Das imagens que a imprensa seleciona para nos mostrar a miséria e as catástrofes. Tudo isso misturado ao que a própria cabeça cria. Por isso, quando se chega, sente, cheira, enxerga e ouve é completamente diferente.

Tomamos um ônibus – confortável – desde Santo Domingo. A miséria que veríamos nas horas seguintes começa logo na fronteira. Todo tipo de produto sendo comercializado num completo caos. Um clima de desordem e a sensação de que há poucas regras ou pouca capacidade de controlar o que se passa por aqueles limites de terras.
 

A fronteira reserva o contraste que rodeia toda ilha Hispânica: uma paisagem marcada por uma beleza desconcertante acolhendo uma miséria que não agrada aos olhos. Longe das praias, ali ao centro da ilha, o lago Enriquillo extenso, belo, mas cuja beleza é ignorada quando o que se importa é, de fato, comercializar aqueles produtos.

Não demorou muito, começamos a chegar em Porto-Príncipe. Começamos porque, chegar de fato em Petion-Ville, a comuna que era nosso destino final, ainda demoraria muito. A metrópole abriga sete milhões de habitantes com uma estrutura urbana absolutamente precária. 
 
 

Isso significa, é claro, um trânsito completamente caótico. O ônibus demorou cerca de 2h30, três horas para conseguir entrar e sair da cidade e tomar a rodovia. Passamos por poucas avenidas. E muitas ruas sem asfalto. 

Todas essas veias são disputadas por ônibus, caminhões com areia e brita, pedestres e comerciantes de rua, motos e tap-tap, o que seria o transporte público. Qualquer pick-up serve para se tornar um. Basta colocar alguns bancos na caçamba, uma proteção em cima e encher aquilo de gente. 
 

Alguns são bem coloridos e misturam frases do tipo “Jesus vai voltar” com desenhos de mulheres semi-nuas. Entre esses transportes também se via, por hora, carros caros e chiques que nos indicam que 69% da riqueza do país está nas mãos de 2% da população.  

A presença da ONU é ostensiva. Na fronteira e na entrada da cidade se faziam presentes as tropas: inclusive com exército brasileiro que pudemos identificar. Pelas ruas, dezenas de carros com a sigla “UN” e outras dezenas estampando as logos dos projetosque compõem a organização: PNUD, UNICEF, UNESCO, etc.

Conforme o ônibus avançava no trânsito caótico, diminuía nossa expectativa em relação à Petion-Ville. Imaginávamos encontrar uma região um pouco mais estruturada e menos caótica. Mas a miséria e o caos não tinham fim. Identificamos a placa de nosso hotel e saltamos do ônibus, antes de chegar à estação final. Já nas primeiras horas, dois pensamentos vieram à cabeça. 1. Isso aqui não tem jeito. Vontade de começar tudo do zero. 2. Eis, aqui, como o capitalismo deu certo.
 

Para conhecer a cidade, o gerente do hotel nos recomendou contratar, por um dia, um chofer. Sem glamour algum, ele era um motociclista que nos emprestaria sua garupa enquanto ele cortaria todo o trânsito de forma arriscada. O único jeito de não ficarmos o dia todo travados atrás de carros e caminhões. 

Essa foi a saída: a frente David, atrás eu e Juliano, juntos, numa garupa, sem capacete: das 9h30 às 17h num clima infernal. No início isso parecia bizarro, desconfortável e achei que ia morrer a qualquer momento em um acidente. Por fim o desconforto era natural, já não temia as manobras arriscadas e estava à vontade, inclusive, para tirar foto em movimento. 
 

Nosso primeiro destino foi o centro de Petion-Ville. Ali, sim, pudemos encontrar uma região mais estruturada e comercial. Poderia dizer que seria um centro de uma cidade brasileira de porte médio. Por outro lado, entre um prédio de escolas de línguas e um restaurante, por exemplo, um pequeno vale onde havia lixão a céu aberto com porcos. 

Entre praças e bancos, havia o mesmo comércio de rua caótico presente em vários cantos da cidade. Centenas de pessoas reunidas e aglomeradas vendendo todo tipo de produto possível – de batata a escova de dentes. Todo mundo vendendo e ninguém comprando. Era essa a impressão. 
 

As mulheres se ajeitam em cima de caixotes ou no chão e em cima de jutas colocam batatas à venda. Os homens penduram carregadores de celular ou galinhas vivas em qualquer grade ou muro que houve por perto. É no caos do comércio informal que a população, metade analfabeta, encontra uma forma de não morrer de fome (literalmente).

Era um feriado, que só pôde ser percebido por nós porque os bancos estavam fechados e na praça havia vários jovens jogando basquete em pleno horário comercial. Fora isso, não seria possível imaginar que não era um dia útil. O que diz muito sobre o país: o emprego informal reina. Dois terços da população são de desempregados. Eles, literalmente, se viram para tocar a vida.
 
 

 
A verdade é que ao olhar nos olhos daqueles que lançavam seus produtos nas calçadas eu não conseguia encontrar nada além de um desejo por sobrevivência. As pessoas ali parecem ter toda sua humanidade reduzida a sua animalidade e seu objetivo de vida limitado a: hoje tenho de encher minha barriga. E, claro, não importa se é feriado ou não. A um contratualista, eu diria: eis o estado natural do homem.

Se em Petion-Ville já pudemos ver mais de perto o caos da falta de urbanismo, de empregos formais e dessa busca por sobrevivência onde todos tentam vender qualquer coisa, tudo se agravou quando chegamos ao Mercado Público. O mesmo que há mais de 200 anos servia para se comercializar escravos.
 
No centro da cidade, onde estão os prédios públicos, vimos os sinais do terremoto que passou há cinco anos. Mas, além dos sinais de destruição, vimos tapumes indicando a recuperação. Recuperação essa que nem chegou perto ainda dessa região do mercado, onde a cena me deu a sensação de que o terremoto foi ontem e no dia seguinte as pessoas voltaram ali para continuar a ganhar a vida.
 
 

Entramos numa avenida mais ou menos larga (comparada com as que tínhamos percorrido) onde havia de um lado, e de outro, grandes prédios coloniais. Todos atingidos pelo terremoto e desmoronados. Diariamente, 200 mil pessoas se viram vendendo de chinelos a galinhas. Tudo ao mesmo tempo. Em frente aos prédios caídos. Ao lado de porcos comendo lixo. Em cima de esgoto a céu aberto. E sob um céu insistentemente azul. Uma cena forte.

É ali que os dados se tornam reais. É onde enxergamos o país que ainda sofre com cólera porque não há saneamento básico e urbanismo. A nação cuja 80% da população está abaixo da linha da pobreza. Foi nesse lugar que a cabeça deu um nó.  
 
A grandeza da história do Haiti nos faz não acreditar no que é o país em 2014. Foi o primeiro a abolir a escravidão antes mesmo da Revolução Francesa. O único onde, de fato, uma revolta de escravos atingiu com êxito seu fim. A primeira república da América Latina, liderada por negros.

E aí, ao ver aquela miséria espalhada por todo canto, a gente se pergunta: “que desgraça aconteceu de lá para cá?”.  

Haiti é o país que, quando colônia francesa, era chamado de “jóia das Antilhas”. Tinha uma produção tão ostensiva de açúcar, tabaco, e algodão que chegava a totalizar metade do PIB da França. Tão explorado e devastado, hoje a economia é baseada, essencialmente, na agricultura familiar: banana, açúcar, café, etc.

Desde o terremoto, em 2010, a emigração de haitianos é crescente. São eles que ajudam a economia do país girar ao enviar dinheiro para suas família – o que também é percebido pelo enorme número de agências Western Union, que permitem essas transações.
 

A natureza não ajuda a tirar o país da miséria. O Haiti se tornou essa parte da ilha Hispânica cuja natureza foi avassaladoramente devastada graças à colonização e hoje a população recebe a fúria de volta. A devastação provocou erosões que colocam a agricultura permanentemente em risco e também provoca inundações trazendo sempre prejuízos e danos enormes à população. 

Politicamente, a história do Haiti é marcada por brilho logo no início com a abolição dos escravos e independência, mas que não permaneceu com o passar do tempo. A nação era considerada subversiva pelas potências coloniais e sofreu diversos boicotes. Ademais, teve de pagar uma espécie de indenização aos ex-proprietários de terra e de escravos franceses. Uma dívida que só pôde ser quitada já em 1922. Por fim, a história do Haiti é marcada por consecutivos governos ditatoriais e corruptos, além de invasões norte-americanas. 

A história política e a fúria da natureza colocam esse país de gente forte e de história admirável na colocação de mais pobre da América Latina. O que tenho certeza é de que esse povo não vai conseguir se reerguer sozinho. É necessário e urgente que as nações olhem e façam mais pelo Haiti. Porque quando você achar que estamos na miséria, tenha certeza de que o Haiti não é aqui. Pense no Haiti. Reze pelo Haiti.
 

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