Charles Dickens (1812-1870) é um dos maiores nomes da literatura inglesa de todos os tempos e, por extensão, da literatura universal. Escritor da era vitoriana, Dickens atingiu consagração mundial através de uma escrita que, por diversas vezes, tangenciava os problemas sociais prementes advindos da mobilidade social que seguiu à Revolução Industrial, que culminou, em sua época, no inchaço da cidade de Londres, num processo de degradação urbana que no Brasil viria a ocorrer muito tempo depois.
Autor de obras memoráveis, como “As Aventuras do Sr. Pickwick” e “Oliver Twist”, Charles Dickens era também um devoto cristão que se preocupava com reflexões de cunho natalino, criando emblemática personagem que vinculava o contexto social de sua época com a mensagem evangélica contida nos ensinamentos de Jesus Cristo. Ebenezer Scrooge, de um conto de natal dickensiano, inspirou a paródia da Disney por meio da personagem Tio Patinhas. Scrooge é o emblema do individualismo capitalista que se preocupa apenas em amontoar dinheiro sem maiores preocupações sociais.
O natal em que Scrooge é visitado pelos fantasmas natalinos, que lhe mostram em que ponto do passado sua humanidade foi perdida e tragada pelas voragens da ambição monetária, bem como as consequências finais que isso terá no futuro, já foi levado às telas em diversas oportunidades, sempre com grande apelo de público. A metamorfose de Scrooge é incisiva e tem como mote evento de caráter sobrenatural, com a aparição dos fantasmas.
Produzindo literariamente numa época em que eventos fantasmagóricos se espalharam por toda a Europa, conforme registra a historiadora brasileira Mary Del Pryore em seu livro “Do Outro Lado – A História do Sobrenatural e do Espiritismo”, Dickens lançou mão da temática sobrenatural em outras narrativas, como, por exemplo, o conto intitulado “O sinaleiro”. Por uma estranha curiosidade, ele próprio acabou tornando-se, de uma forma um tanto enviesada, uma espécie de personagem de suas próprias narrativas.
No ano em que faleceu, 1870, Charles Dickens publicava semanalmente capítulos daquele que seria seu último romance, “O Mistério de Edwin Drood”, uma incursão pelo gênero romanesco policial. Toda a Inglaterra acompanhava atentamente a narrativa, quando Dickens faleceu em meio à trama que desenvolvia para os seus ávidos leitores. Sua história ficara inacabada no momento em que Edwin Drood desaparece misteriosamente, deixando a dúvida sobre se ele ainda está vivo ou não.
Charles Dickens agora se tornaria um enigmático fantasma de suas narrativas anteriores. Isto porque no ano de 1873 é publicada nos Estados Unidos a resolução do que ocorrera a Edwin Drood. Charles Dickens-espírito (ou fantasma) teria completado sua narrativa pelas mãos de um jovem mecânico de escassa cultura residente na cidadezinha de Brattleboro, estado de Vermont, que respondia pelo nome de Thomas P. James. No Brasil, o fenômeno se repetiria de forma mais intensa e profunda com Francisco Cândido Xavier, de parca formação escolar, que escreveria influenciado por uma verdadeira legião de escritores famosos no panteão luso-brasileiro.
O EVANGELHO DE JESUS SEGUNDO DICKENS
Em seus amplos estudos acerca da textualidade, tanto linguística quanto literária, o pesquisador francês Gerard Genette vai servir-se, em determinado momento, de instigante metáfora para correlacionar os diversos estratos que permeiam um texto. Assim, retira o autor do procedimento medieval de escrever, apagar e reescrever sobre um mesmo pergaminho, cujo processo completo se denomina palimpsesto, a metáfora para tratar das diversas possibilidades e camadas de leitura a que um documento escrito está sujeito.
Nesse sentido, um dos textos que possivelmente mais tenha camadas sobrepostas seja o evangelho em seu conjunto. Desde suas origens, a partir da tradição oral, até as infinitas exegeses a que constantemente está sujeito, o texto evangélico, por sua extraordinária força cultural, constitui uma influência ímpar em suas correlações com os demais setores culturais da humanidade.
Em “Palimpsesto – A Literatura de Segunda Mão”, obra em que desenvolve suas considerações sobre as interações textuais numa perspectiva de reciprocidade, Genette estabelece que um texto-base, de que outra textualidade deriva ou com o qual dialoga, é um hipotexto. O hipertexto é o material resultante do dialogismo com o hipotexto. Na história da literatura, é quase impossível encontrar algum nome exponencial que não tenha estabelecido esse diálogo intertextual com a fonte evangélica e bíblica.
No contexto da narrativa sobre os natais de Scrooge, tem-se uma exemplificação desses pressupostos gennetianos. Mas Charles Dickens oferece, involuntariamente, ao grande público, outra instigante produção que se caracteriza como um hipertexto que se origina da hipotextualidade evangélica, mais especificamente do “Evangelho de São Lucas”. Trata-se da obra intitulada “A Vida de Nosso Senhor”.
Esta produção literária de Dickens é um presente de natal que oferece a seus filhos e, indiretamente, a seus leitores, já que o autor não permitiu sua publicação em vida, pois o material fora produzido entre os anos de 1846 e 1849 para despertar em seus dez filhos a fé na mensagem de Jesus Cristo.
Entremeando pequenos comentários em meio a passagens sobejamente conhecidas pelo leitor dos evangelhos, Charles Dickens imprime nessa sua narrativa palimpsêstica do evangelho lucasiano toda a sua verve estilística, caracterizada por uma poeticidade incisiva, envolta em uma fé que o autor queria, no momento natalino, ver contemplada apenas por seus descendentes.

*Gismair Martins Teixeira é pós-doutorando em Ciências da Religião pela PUC-GO; doutor em Letras e Linguística pela UFG. Professor e pesquisador.