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Gismair Martins Teixeira

“O Novo Testamento” e a simbologia paratextual de uma tradução

| 23.03.20 - 08:37
Goiânia Numa definição rápida, os dicionários apresentam o termo “paratexto” como o conjunto de “elementos textuais ou gráficos que acompanham o texto de uma obra”. O termo foi cunhado pelo crítico literário e teórico francês, Gérard Genette, e participa de uma constelação conceitual com outras definições como hipotexto, hipertexto, transtextualidade, arquitextualidade, todas alusivas às complexidades textuais de algo enganosamente simples como um texto tal como é percebido imediatamente pelo seu leitor. Assim, por exemplo, as notas de rodapé que elucidam determinada passagem de uma textualidade específica se configuram como paratextos.

O Evangelho de São João Evangelista registra no seu capítulo vigésimo primeiro, no versículo vinte e cinco: “Há, porém, ainda muitas outras {coisas} que Jesus realizou, que se fossem escritas uma por uma, nem mesmo – suponho – o mundo teria lugar para os livros escritos.” A afirmação do evangelista pode ser lida, a princípio, como uma hipérbole, ou seja, uma figura de linguagem caracterizada pelo exagero com a função de realçar determinado aspecto. Um olhar mais atento, porém, em termos de interpretação exegética e hermenêutica, pode sugerir que não se trata tanto assim de uma hipérbole.
 
A longa tradição teológica que se desenvolveu desde o advento do cristianismo até os dias atuais, tomando por base a textualidade evangélica e todas as áreas do conhecimento humano que foram afetadas por ela, referendam não tratar a afirmação de São João Evangelista, de forma totalizante, de uma hipérbole. O pensamento de Santo Agostinho, exarado em obras colossais como “Confissões” e “A Cidade de Deus”; a escolástica medieval com seu expoente maior, São Tomás de Aquino, e sua extraordinária “Suma Teológica”, dividida em sete volumes, constituem dois exemplos de um diálogo cultural com os diversos campos do saber humano, pois ambos os pensadores trazem para o debate da cristandade as figuras filosóficas de Platão e Aristóteles, respectivamente, que influenciaram praticamente todas as áreas do conhecimento humano.
 
Mesmo a ciência e a filosofia que se contrapuseram a esses pilares da cristandade tiveram, para fazê-lo, de dialogar com o pensamento desses vultos cristãos. E o fizeram diante de escritos magistrais, que trouxeram uma compreensão diferente para outros aspectos do capital pensado da humanidade, o imaginário, conforme a definição do antropólogo francês Gilbert Durand em “As Estruturas Antropológicas do Imaginário”. Assim, mesmo na filosofia e no pensamento científico de homens que negam a espiritualidade, tem-se o necessário diálogo com o pensamento da cristandade, o que torna a fala do evangelista não tão hiperbólica assim.
 
Ou seja, mesmo que se corra o risco do exagero, a cultura humana pós-evangelho parece redundar numa espécie de macroparatexto que tem na escritura evangélica o seu epicentro, o seu texto-fonte, a partir do qual os demais discursos funcionariam como um megaparatexto cultural.
 
A TRADUÇÃO DE HAROLDO DIAS
O termo “paratexto” é formado a partir do prefixo grego “para”, que significa “ao lado de”. De origem semelhante em sua composição, o termo “paranormal” significa “ao lado do normal”. Paranormal remete, por sua vez, por sinonímia, a mediunidade, o dom de ser intermediário entre um mundo sobrenatural e o seu congênere físico. O conjunto de ideias alusivas à mediunidade e sua correspondência com o biblismo neotestamentário se congrega em torno de um recentíssimo projeto de tradução do “Novo Testamento” levado a efeito no âmbito do espiritismo.
 
Forma de religiosidade surgida a partir da França, em 1857, com a publicação da obra “O Livro dos Espíritos”, por Allan Kardec, o espiritismo encontrou clima propício no Brasil. Num processo de fluxo e refluxo móvel no tempo e no espaço, hoje ganha o mundo através da atuação de divulgadores que o têm levado de volta à Europa e aos demais continentes, conforme pudemos apresentar no artigo “Territórios, mobilidade e biografia no espiritismo franco-brasileiro”, publicado na Revista de Estudos da Religião-REVER, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que pode ser conferido no link aqui. Nesse trabalho, abordamos a atuação do médium espírita Divaldo Pereira Franco na difusão espírita pelo mundo.
 
Nesse contexto, a tradução de “O Novo Testamento” a partir do grego, realizada por Haroldo Dutra Dias, representa, no plano interno da brasilidade espírita, uma das grandes imersões culturais desse sistema simbólico de crença no campo da paratextualidade bíblica. Haroldo Dutra Dias tem sido também um dos nomes que têm levado o espiritismo para outras territorialidades planetárias, a exemplo de Divaldo Franco. Juiz de Direito no estado de Minas Gerais, Dias cursou matérias especializadas em grego antigo e literatura clássica grega na Faculdade de Letras na Universidade Federal de Minas Gerais, uma das instituições mais conceituadas do país nesse campo de estudos.
 
Poucas vezes o projeto de uma obra foi tão bem apresentado como Haroldo Dias conseguiu na introdução de seu gigantesco trabalho. O volume ficou física e culturalmente denso, mediante um grande arsenal de notas explicativas (paratextuais) sobre aspectos que muitas vezes não capta a atenção do leitor apressado. Exemplo disso pode ser visto logo na abertura do Evangelho de São Mateus, quando a primeira nota expõe didaticamente o porquê das longas genealogias que para muitos parecem enfadonhas.
 
Na sua peça introdutória, Haroldo Dias explica, ainda, detalhadamente, as opções de tradução e metodologia que teve de lançar mão para alcançar seus objetivos, muito bem definidos por ele em seu projeto. Com uma retórica conciliatória e contemporizadora, o autor justifica o motivo de mais uma tradução de “O Novo Testamento” ao português, que já dispõe de várias versões em vernáculo. De maneira bastante polida, cordata, apresenta seu trabalho à apreciação cultural brasileira, frisando, porém, sua inserção no campo do imaginário espírita.
 
De forma curiosa e emblemática, a introdução de Dias para “O Novo Testamento”, que vale por uma aula introdutória de exegese e hermenêutica tanto bíblica quanto literária e linguística, traz uma assinatura com forte componente simbólico no contexto da cultura espiritista. A data de seu texto introdutório, embora a obra tenha sido publicada em 2018 pela Editora da Federação Espírita Brasileira, é de 02 de abril de 2010. Trata-se, exatamente, do centenário de nascimento de Francisco Cândido Xavier, o maior ícone da cultura espírita brasileira.
 
Conforme o imaginário espírita, Chico Xavier era orientado pelo espírito Emmanuel, que seria o responsável, no âmbito desse sistema simbólico de crença, por uma revivescência da textualidade evangélica. De fato, a entidade espiritual Emmanuel possui diversos volumes analisando com lupa quase todos os versículos bíblicos neotestamentários sob a ótica do etos espírita. Ao que tudo indica, o trabalho de tradução de Haroldo Dias guarda uma filiação cultural precisa ao projeto do gênio socrático xavieriano, o que fica sugerido de forma simbólica na efeméride de sua introdução.
 
Gismair Martins Teixeira é pós-doutorando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Também é doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás, além de professor e pesquisador.

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