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Guilherme Melo

Lugar de onde se fala

| 12.06.20 - 17:18
O termo “lugar de fala” se tornou muito frequente em debates entre militantes de movimentos sociais, como LGBTQI+, feminismo, movimento negro, e principalmente, em debates na internet. Com o assassinato do ex-segurança George Floyd, vítima de racismo no último dia 25, muitas discussões e movimentos se tornaram emergentes entre o fim de maio e início de junho, e consequentemente, voltamos a ouvir cada vez mais o termo.
 
Em tese, “lugar de fala” seria a busca pelo fim da mediação de um terceiro, ou seja, o indivíduo que sofre com o preconceito começa a falar por si, como protagonista da própria luta e do movimento. Tudo isso surgiu como um contraponto ao silenciamento da voz das minorias sociais por grupos privilegiados em espaços de debate público. Assim, os negros teriam a autoridade e legitimidade para falar sobre o racismo, mulheres sobre o feminismo, transexuais sobre a transfobia e assim por diante.
 
O conceito muitas vezes pode auxiliar pessoas a compreenderem como o que falamos e de que maneira falamos pode marcar uma relação de poder e ajudar na reprodução, ainda que sem intenção, do racismo, machismo, lgbtfobia e preconceitos de classe e religiosos. Mas, na prática, o termo está se tornando cada vez mais exclusivo do que inclusivo e, assim, restringindo a fala de um assunto a um determinado grupo.
 
Uma crítica à adesão total do “lugar de fala” num debate público é que ele pode limitar a troca de ideias e, por exemplo, impedir que um homem fale sobre feminismo, mesmo que seja em defesa de alguma corrente do movimento. Ou quando um gay branco não pode falar sobre feminismo ou racismo por não ser negro ou mulher. Ou, então, quando a fala de uma mulher branca é inferiorizada dentro do feminismo negro, sendo que todas as lutas sociais caminham paralelamente e, em resumo, buscam o respeito.
 
A maneira como o conceito é aplicado em debates nos dias de hoje, principalmente em redes sociais, é muitas vezes superficial e incompleta, o que pode levar a equívocos em sua aplicação. A impressão que fica é de que as pessoas que citam ou aplicam o termo desta maneira sequer leram ou estudaram o conceito. Estão apenas, como papagaios, reproduzindo ideias que não entendem.
 
O nascimento do termo ainda não é muito preciso, mas muitos pesquisadores, como Orlandi, apontam a origem da discussão para as feministas norte-americanas do início da década de 1980. Para a jornalista e pós-doutora em ciência da comunicação Rosane Borges, deve-se ter muito cuidado com a aplicação do termo “lugar de fala”, pois ele vem de um campo teórico que analisa o discurso a partir de teorias da enunciação. Para a pesquisadora, lugar de fala “é a posição de onde olho para o mundo para então intervir nele”.
 
O raciocínio de Borges caminha em direção à linha de pensamento da ativista e pesquisadora Djamila Ribeiro. Ela explica que, necessariamente, o certo não seria falar só de experiências individuais, mas das condições sociais que colaboram ou não para que esses grupos acessem lugares de cidadania. Isso só ocorreria: “Principalmente, por meio de um debate estrutural de indivíduos que acrescentem ao assunto”.
 
Os estudos de Ribeiro e Borges, por fim, chegam às formulações de Pierre Bourdieu, que permeiam o assunto, trazendo conceitos para habitus. Segundo o autor, a compreensão de discursos e debates depende do lugar de onde falam e para quem falam. Porventura, se fosse substituída a expressão de “lugar de fala” para “lugar de onde se fala” não haveria tantas distorções do seu real significado.
 
Importante destacar que este artigo não tem com objetivo deslegitimar as lutas sociais e o “lugar de fala” de ninguém. O peso do discurso de uma mulher sobre o machismo ou de um negro sobre o racismo é extremamente valioso. Mas não precisa ser o único discurso, já que estamos lutando por mais respeito e pela conquista de direitos.


*Guilherme Melo é jornalista e assessor de comunicação.

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