Não me canso de surpreender-me com o grau de compadrismo das letras goianas. Ele não está presente nas artes visuais, no audiovisual, no teatro ou na música, ao menos neste grau.
Nas letras, em geral, dá-se lugar para a manifestação sem qualquer inibição deste que se revela um persistente corporativismo reverso, corroborando uma tremenda falta de autocrítica dessa espécie que viceja nas melhores entidades do ramo, diria. Uma marca do setor. Raros são os que conseguem se enxergar neste exercício tão infausto e, abrindo os olhos, sair do fluxo da manada.
Pois é esse mesmo movimento de manada, já conhecido de outras tramas, que agora se manifesta em mugidos, pios e bramidos inicialmente tímidos (e assim o serão!), contra a possível substituição do atual secretário municipal de cultura de Goiânia, Kleber Adorno.
Dando azo à precariedade de raciocínio, seus componentes tratam logo de taxar o próximo secretário, se acaso houver, como um alguém que seria “terrível” para a cultura por apenas ser um “pastor da Igreja Universal”. Dão provas de um preconceito estrutural que talvez só não seja maior que o velho compadrismo entremeado em suas páginas.
De há muito vimos que pertencer ao setor cultural não é credencial que possa garantir por antecipação o sucesso como gestor da área. Exemplos antigos e recentes comprovam a afirmação. Só não vê quem não quer, ou quem se agarra a meias verdades (ou velhas mentiras) que só um elevado grau de compadrismo, como dito, pode justificar.
No caso em tela, é bem verdade que Kleber Adorno é um gestor acima da média, um indubitável guerreiro da gravata que desde a década de 1980 concretizou avanços reais para a cultura, primeiramente no Estado e depois na capital. É, sem dúvida alguma, o mais completo secretário de cultura que já tivemos na nossa incipiente história da gestão cultural. Mas daí a afirmar que seu trabalho atual tem a mesma prestabilidade de épocas anteriores, ou que sua posição não permite que seja trocado por outro; é redobrada falácia.
A esse respeito pude me expressar mais extensivamente no artigo “Fadiga Cultural” (ARedação, 04/01/21), quando de sua nova nomeação para o mesmo cargo de secretário municipal de cultura, pela 4ª vez. Não pude, no entanto, relatar nada que desabone sua conduta profissional e exemplar, mas é bem verdade que aquele ímpeto e discernimento que o faziam dedicar-se de corpo, alma e ideias a seus objetivos e às expectativas do setor, visivelmente já não são os mesmos.
Vejamos, por exemplo, os casos evidentes de situações que se arrastam por anos em suas mãos sem um resultado palpável, como as questões da deplorável manutenção do Museu de Arte de Goiânia; do abandono também já plurianual do Palácio da Cultura na praça Honestino Guimarães, vulgo praça Universitária, com a sua Biblioteca Marieta Telles Machado, que de lá se evaporou sem deixar traços; do vazio, da inércia e da desqualificação da Casa de Vidro; do recolhimento do Museu Confaloni e do sumiço do Grande Hotel, supostamente dois potenciais centros de cultura; sem falar das seguidas promessas de inúmeros projetos que ficaram só na intenção e na elaboração teórica, sem jamais virem à luz.
Por outro lado, com a possível saída do secretário -ou não, não se deve sofrer por antecipação. Tampouco se deve temer que o novo secretário seja um pastor. Para quem não se lembra, o secretário de cultura do Nion Albernaz, considerado um dos melhores prefeitos de Goiânia, foi justamente um padre com todas as letras, que por quatro anos sequer deixou de celebrar suas missas enquanto exercia sabiamente sua função.
A verdade é que existem pessoas boas e pessoas ruins em todas as funções, em todos os lugares e em todos os credos. Não devemos esperar pelo pior. Agir assim é dar as mãos ao pessimismo justamente em um momento em que precisamos, antes de mais nada, ser proativos, pois o otimismo é o primeiro passo para fazer com que as coisas aconteçam para melhor.
Uma lista de assinaturas dos interessados nas coisas da cultura em Goiânia deve, sim, ser feita imediatamente, mas não para pedir a permanência do morno cultural, mas para nos assegurar das intenções do sr. prefeito, para que a mudança, se assim ele desejar, seja para melhor. O que, convenhamos, não está difícil de ser.
Uma das provas de que existe mesmo no ar uma certa fadiga cultural é observar que, como seria de hábito em início de governo, o empossado viria a público ansioso por apresentar sua linha de atuação, seus objetivos, seus programas e seus projetos. E, ao mesmo tempo, convidar à participação os agentes do seu setor e, assim, previamente sensibilizar a comunidade em geral. Isso não aconteceu ainda-se é que vai acontecer. Já transcorridos 2,5 meses de nova/velha gestão, não sabemos nada a seu respeito. A imprensa, que sempre é aliada dos que desejam realizações, especialmente na área cultural, está à espera. Quer anunciar espontaneamente, mas depois se reserva o direito de conferir se o dito foi cumprido. Talvez por isso se evitou de apresentar alguma coisa, já sabendo que não haveria correspondência das expectativas que seriam depositadas na conta.
E que a pandemia, uma vez mais, não sirva como recurso para este ou -se for o caso- o próximo secretário de cultura se desculpar perante a sociedade. A lei Aldir Blanc, que é iniciativa federal, tem compensado em parte outro descaso perpetrado pelo (ainda) atual secretário: a falta dos editais da Lei Municipal de Cultura, que há dois anos não são realizados, sem qualquer explicação para os artistas, os produtores culturais e o respeitável público.
Há várias maneiras de fazer acontecer e uma delas é saber manter a chama da cultura acesa, mesmo em tempos terríveis de isolamento social. Afinal, se paramos lá fora, aqui dentro estamos em plena efervescência e ainda mais carentes de manifestações que satisfaçam os desejos de fruição e a capacidade de criação. Chega de efeito reverso. Que venham logo os novos tempos.
*Px Silveira é biógrafo, gestor e produtor cultural