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GISMAIR MARTINS TEIXEIRA

Soul e o mito de Er

| 30.03.21 - 09:41
A pandemia que se abateu sobre a humanidade a partir do final de dezembro de 2019, e que parece distante de terminar, mexeu de forma drástica com a vida de todos. Com o isolamento social recomendado, mas negligenciado por muitos incautos, atividades corriqueiras como ir ao cinema sofreram mudanças radicais. Filmes e temporadas de séries, por exemplo, tiveram suas gravações interrompidas, estreias foram adiadas e muitas atividades correlacionadas ao mundo do entretenimento sofreram reveses e foram forçadas a se adaptarem às novas circunstâncias.

No contexto dessa conjuntura caótica, filmes foram lançados diretamente nos serviços de streaming, pulando a etapa das salas cinematográficas, que foram fortemente impactadas pela necessidade da distância social e de evitar-se ambientes fechados. Dentre os exemplos de produções que foram lançadas diretamente nas plataformas que disponibilizam os filmes assim que saem das salas comerciais, um dos maiores sucessos recentes de audiência em todo o mundo é a animação Soul, dos estúdios Disney e Pixar. Lançada na segunda metade de dezembro de 2020, a animação conta com as vozes de astros como Jamie Foxx, Tina Fey e Graham Norton, sob a direção de Pete Docter e Graham Norton. Mike Jones, Kemp Powers e Pete Docter assinam o roteiro dessa produção da gigante do entretenimento.

A sinopse de Soul empolgou multidões, embora o tema possa ser um tanto quanto árido para as mentes infantis, normalmente o público-alvo da Pixar, conforme foi apontado por diversas análises em torno de sua narrativa. Joe Gardner, que ganha vida com a voz de Jamie Foxx), principal nome do elenco, é um professor de ensino médio estadunidense que leciona música para alunos desinteressados. Seu sonho de infância era ser músico de jazz. Quando finalmente tem a oportunidade de mostrar seu talento musical em uma apresentação em um clube, o Half Note Club, sofre um acidente que faz com que sua alma se desligue do corpo e vá para o mundo espiritual.

É no desdobrar da narrativa que o espectador vai perceber que Gardner não se encontra ainda morto, mas sim em estado de coma, o que o faz jornadear pelo além levando as almas responsáveis pela liberação definitiva da vida terrena à confusão no que diz respeito ao seu verdadeiro estado. Joe Gardner não segue a luz, expressão que já se tornou icônica em diálogos cômicos que envolvam personagens em situação de trânsito entre a vida material e a vida no mundo das almas, e ao fugir do caminho que conduz em definitivo ao além ele se esgueira em regiões outras, preparatórias das almas que vão nascer no mundo físico.

Nesse departamento do além, o músico se encontra com a rebelde alma 22. Ali, todas elas se preparam para a vida terrena, escolhendo profissão e outras circunstâncias da vida que terão no mundo. A 22, porém, não se deixa convencer por nada que pareça interessante na terra, resistindo à encarnação. A sinopse vai desenvolver-se em torno desse núcleo dramático, quando cabe a Joe Gardner convencer a alma 22 a mergulhar no corpo físico para vivenciar suas experiências necessárias para a sua jornada pelo infinito.
 
O MITO DE ER
Na composição narrativa, os roteiristas Jones, Powers e Docter parecem ter se inspirado fortemente em Platão e Sócrates para a composição da história de Soul. Numa das obras magnas do helenismo, A República, Platão apresenta o diálogo entre Sócrates e alguns discípulos em torno de questões ligadas a uma cidade utópica, a república, que deveria ser governada idealmente por algum filósofo que fosse digno dessa designação. A educação, o governo, os cidadãos, constituem elementos que fazem parte das lições socráticas em torno da sua grande utopia.

Logo no início de A República, ao tratar da educação, pode o leitor perceber a primeira correlação com a animação da Pixar. Conforme os apontamentos de Sócrates, a música constituiria um dos pilares da educação do indivíduo que em sua urbe ideal ficaria encarregado da segurança. Joe Gardner, que divide o protagonismo com uma alminha do além, é um professor de música frustrado pelo descaso de seus alunos, com uma ou outra exceção. A conexão mais explícita, porém, que Soul apresenta com o pensamento socrático no clássico platônico se refere ao mito de Er.

Nas últimas páginas de A República, Sócrates relata o mito de Er para Glauco. Ao discorrer sobre a sorte da alma após a morte como retórica em favor da busca da virtude, o filósofo relata que Er, filho de Armênio, da Panfília, falecera aparentemente em uma batalha. Quando os corpos foram recolhidos para a cremação, percebeu-se que Er se encontrava com boa aparência, sem os ferimentos de guerra. No momento em que iria ser cremado sobre um estrado, em obediência aos ritos funéreos, ele ressuscitou. Após voltar dos mortos, passou a relatar o que vira no além.

Relata Sócrates que Era, quando deixara o corpo, passou a caminhar junto com um cortejo de almas, chegando todos a um local divino, “onde se viam na terra duas aberturas situadas lado a lado, e no céu, ao alto, duas outras que lhes ficavam fronteiras”. Ali havia juízes, que emitiam sentenças e ordenavam aos justos para que se encaminhassem para a direita na estrada que ia para o céu. Aos maus era ordenado que se dirigissem para uma estrada descendente, que ficava à esquerda. A cristandade, posteriormente, adotaria um direcionamento parecido no além, o que levou a preconceitos medievais em relação a pessoas canhotas.

Quando Er se aproximou dos juízes, ouviu deles a orientação de que deveria voltar para a terra, tornando-se um mensageiro do além. Para tanto, deveria observar com atenção tudo o que ocorria ali. Er cumpre as determinações dos juízes daquela região espiritual. Observa as Moiras, fiandeiras do destino na tradição grega, e suas atividades junto às almas que deveriam escolher as novas condições de vida que teriam no mundo terreno. O filho de Armênio observa todo um conjunto de almas fazendo suas escolhas, mas uma em particular despertará a curiosidade do leitor versado em literatura. Trata-se de Ulisses.

Notabilizado na literatura grega de Homero, a quem Sócrates faz constantes referências em A República, pela sua sagacidade em engenhos como o cavalo de Troia, Ulisses mereceu um relato particular, na Odisseia, de suas aventuras de retorno a Ítaca, seu reino, quando teve de enfrentar feiticeira, sereias e o deus do oceano para reencontrar sua amada esposa. Em seu regresso, constantemente teve de valer-se de sua sagacidade. Cansado de aventuras, no além vislumbrado por Er, Ulisses escolhe renascer fisicamente numa condição em que teria uma vida simples, pacata, dedicada a cuidar de atividades prosaicas do dia a dia até a velhice e a morte.

A condição de Odisseu, nome com que também é conhecido, representa outra instigante correspondência com a narrativa de Soul, pois de forma enviesada a alma 22 descobre, com o auxílio do músico que faz as vezes de Er, que as coisas aparentemente mais insignificantes da vida, como o sabor de uma pizza, por exemplo, pode revestir-se de um profundo significado, ecoando os versos de Fernando Pessoa quando escreve que “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”.
 
*Gismair Martins Teixeira é pós-doutorando em Ciências da Religião pela PUC-GO; Doutor em Letras e Linguística pela Faculdade de Letras da UFG; professor e pesquisador do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Seduc-GO.


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