Ainda me lembro do cheiro do glacê real, feito de claras de ovo, açúcar e limão recender pela casa quando minha tia acionava o botão da batateira de dois garfos e começava, enfim, a preparação para mais uma se suas obras de arte. O bolo com recheios de abacaxi, doce de leite e ameixa e/ou figo e molhado com cidra, já estava pronto desde cedo e, se os céus ajudassem e sol se mantivesse quente, tudo daria certo. Caso contrário, a tampa do forno serviria de suporte para que o trabalho de cobertura do que seria a maior alegria do dia, o bolo!, não se tornasse uma saga e terminasse em choro, ranger de dentes e travesseiro molhado de lágrimas. Muitas vezes, a decepção perdurava por dias. E eu comia todo o glacê que não secava e virava o lambedor oficial de toda a tralha usada.
Tia Tereza sempre fez questão de preparar o bolo para o aniversário de cada um - e a família é grande! - com Perfeição, diga-se, com P maiúsculo. Não admitia qualquer erro ou eventualidade climática que pudesse abalar as estruturas da massa ou da confeitaria. A coisa era tão séria que uma simples rachadura no glacê já seco poderia gerar desconforto por um tempo indeterminado. Uma dessas obras era uma oca de uma aldeia indígena para um sobrinho que nascera em janeiro, no verão chuvoso. Chuva e tempo fechado não garantiam firmeza na obra. E despencou! E tia Tereza chorou. Se jogou na cama, debruçou-se no travesseiro e encharcou-o de lágrimas. No final, deu certo. Mas, além de tudo, o sabor era único, inigualável, incomparável, irresistível e… e Perfeito! Com P maiúsculo. Poucas coisas que comi em mais de meio século de existência nesta vida foram tão saborosas e gostosas quanto o clássico bolo confeitado de aniversário que tia Tereza, magicamente, preparava, esculpia. Escrevo isso com olhos marejados pela melancolia, pela saudade, pelo sabor, pelo amor que nos rondava enquanto a festa era preparada.
O pão de ló tinha uma massa aerada e fina, leve e saborosa e aceitava qualquer recheio e qualquer cobertura. Tinha a vantagem de ser maleável e resistente para ficar encharcado de cidra. Mas antes de chegar o dia de colocar, literalmente, a mão na massa, tia Tereza estudava o tema e o modelo do bolo. Não era apenas fazer um bolo e recobrí-lo com glacê. Tinha estudo, croqui, preparação, engenharia e arquitetura. E, por isso, era tão especial. Muitas vezes, o bolo só chegava à mesa minutos antes de os convidados se reunirem. Os motivos, geralmente, eram o tempo - úmido e frio - ou a engenharia escolhida para ficar em cima do bolo. Se o dia começasse como os típicos dias de agosto, seco e quente, a garantia de que tudo sairia como planejado era certo. Caso contrário…
Quando o tempo virava e o sol era encoberto por nuvens por volta da virada do dia, as nuvens também pairavam sobre nossas cabeças. Tensão! E, caso a chuva caísse, o choro também era certo. Isso porque o glacê de claras, ou Glacê Real, não se firmava com tempo úmido. Os bicos de confeitaria moldavam o glacê sobre a massa e as lágrimas molhavam a face, lavando toda a empolgação do início. O rosto era só decepção. A esperança era acender o forno para aquecer e ressecar e colocar o bolo em cima da tampa aberta para, ao menos, cobrí-lo. Por mais que as tempestades caíssem, deixando glacê e lágrimas também despencando, o bolo sempre chegava à mesa da festa com tempo suficiente para preenchê-la com balas de coco, brigadeiros, língua de sogra - o meu preferido - e garrafas de refrigerante com gravata borboleta e chapeuzinho. E, não! Não sobrava bolo. Não sobrava nada.
Mas tia Tereza vai muito além de uma confeiteira de responsa e de verdade, cheia de originalidade, quando a expressão “chef de cozinha” nem era usada. Mas ela é uma verdadeira chef de cozinha autodidata, com a destreza de fazer seu paladar gritar de alegria e seu coração pular de satisfação. Sim, o que ela cria e prepara mexe com a gente para sempre. Viram memórias afetivas das mais profundas. Ninguém faz um bife de coração de boi melhor que o dela. Nin-guém! Tudo o que ela faz abraça a gente primeiro pelo olfato, depois pela visão, pelo paladar e, finalmente, pelo coração. Seja um mexido simples ou um assado cheio de salamaleques; um simples suco de limão ou uma vitamina de abacate com amendoim, leite condensado e uma pitada de sal. Seja o que for, tia Tereza tem o poder de mexer com o estômago e o coração de todos que provam suas iguarias e, principalmente, que fazem parte de sua deliciosa companhia. E esta não é uma crônica sobre comida. É sobre agradecimento.
*Rimene Amaral é jornalista, radialista e fotógrafo