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Manoel Balbino e Pedro Henrique Máximo

O Setor Sul e o Plano Diretor

| 19.07.21 - 15:36
“Escute Robert Moses, ouça se puder
É sobre o nosso bairro que você está tentando condenar
Nós não vamos ficar sentados e assistir nossas casas serem derrubadas...”
(Bob Dylan e Jane Jacobs, citado por Pedro Máximo)


Os anos 2020 e 2021 serão lembrados como o período histórico da pandemia do novo coronavírus associada a uma crise econômica e uma anomia social sem precedentes. Em momentos de transição que penalizam a sociedade surgem também oportunidades, negócios, novas formas de acelerar processos, de suprimir etapas e, infelizmente, de manusear o bem público na direção de interesses privados.  

Nesse contexto, algumas propostas do novo Plano Diretor de Goiânia têm deixado parte da população indignada. Em março de 2020, durante uma audiência pública sobre o Setor Sul, um vereador esboçou a possibilidade de a Prefeitura vender as áreas verdes e verticalizar o bairro, surpreendendo a todos. Associações de moradores, professores universitários e o Conselho de Arquitetura e Urbanismo - CAU ali presentes se manifestaram contra essa insensatez. “Uma falta de sensibilidade com a paisagem”, definiu a arquiteta Marcia Guerrante entendendo que a Revisão do Plano Diretor não estaria sintonizada com os interesses da população.

Diante da ameaça de descaracterização do Setor Sul, diversos grupos se organizaram em defesa do bairro e a discussão ganhou força na cidade. Os moradores fizeram um abaixo assinado coletando quase três mil assinaturas em poucos dias, participaram de debates com vereadores, recorreram ao Ministério Público e promoveram manifestações com faixas e panfletos. Cientes do seu papel, também optaram por não aceitar participações que levassem a politização dos fatos. Algum tempo depois, uma mobilização popular ocupou a frente da Câmara de Vereadores tentando evitar que a votação acontecesse durante a pandemia, já que a participação dos moradores naquele momento seria limitada.

Finalmente, com a proximidade das eleições municipais, as dúvidas se tornaram maiores que as certezas, o debate entre os vereadores foi interrompido e o processo de revisão do Plano Diretor paralisado. Mais recentemente, já em 2021, a nova administração municipal retomou às discussões, embora algumas decisões já houvessem sido pré-formalizadas com indícios de prejuízo para os moradores e vantagens para o setor imobiliário.  

Tema de pesquisas em diversas Universidades, citado em inúmeros livros, o projeto do Setor Sul (1935) formulado por Armando de Godoy trouxe para Goiânia as ideias da Cidade Jardim inglesa e norte-americana e já previa áreas verdes generosas que pudessem garantir a permeabilidade do solo e mais espaços caminháveis para o cidadão. A hierarquia viária é fortemente marcada por vias arteriais que alimentam a cidade, com vias locais e coletoras, configurando uma proposta de vizinhança nos moldes das pequenas cidades. Godoy também criou um padrão para as ruas locais ou cul-de-sacs, sempre em declive para as vias coletoras, onde topografia e arruamento atuam em sintonia. A ideia de “ruas de serviço” no Setor Sul antecede o Plano Piloto de Lucio Costa, o que certamente levou Yves Bruand a afirmar em seu livro Lárchitecture contemporaine au Bresil que “Goiânia é a préfiguração de Brasília”. Enfim, a relevância urbanística do Setor Sul é comparável à do Setor Central, tombado pelo Iphan em 2003.

Mas essas ideias não sensibilizaram alguns setores da economia e da administração pública que historicamente tem tratado a cidade como um simples estoque de terras à disposição do mercado. Quando um imóvel muda de categoria - de rural para urbano, de terreno para construção e finalmente se transforma em um edifício, entra em cena a especulação. 

Entre as justificativas para a verticalização, predomina o critério de proximidade entre os terrenos e os corredores de transporte coletivo. No entanto, é o próprio setor imobiliário que não identifica os usuários do ônibus como potenciais compradores desses imóveis. A faixa de renda, a ocupação profissional, o acesso ao crédito e a própria cultura - apartamento não tem quintal - indicam que o mercado não está interessado nesse cliente, e vice-versa. Aparentemente, esse argumento tem sido utilizado principalmente para justificar o adensamento de áreas mais nobres, atingindo terrenos afastados até 350 metros desses eixos. Afinal, quem gostaria de acordar e dormir com o barulho dos ônibus? Assim, na maioria dos casos, o eixo de transporte atua simplesmente como justificativa para a verticalização das áreas de interesse do mercado.     

Goiânia deverá enfrentar grandes e novos desafios ambientais nos próximos anos. O próprio poder público abriu mão da exigência de se manter áreas verdes e permeáveis nos terrenos edificados, substituindo-as pela possibilidade de se “construir jardins sobre lajes impermeabilizadas”. Os subsolos, que anteriormente deveriam ficar acima do lençol freático, agora são ilimitados, chegando literalmente ao fundo do poço. É raro vermos as pessoas plantando arvores em suas calçadas, com razão: se plantar, não pode cortar; se não plantar, nada acontece...então, para que arriscar? Essa é uma questão crucial que precisa ser debatida e solucionada urgentemente, não só com penalizações, mas também com incentivos para que tenhamos uma paisagem de melhor qualidade. A cidade, que um dia se orgulhou de suas ruas arborizadas, hoje já não existe mais. 

Apesar desse quadro complexo, o Setor Sul ainda resiste como um raro exemplo de urbanismo sustentável. A preservação de suas áreas verdes, do traçado viário e do gabarito (altura) das construções através do tombamento pelo patrimônio histórico parece ser a única solução para que, no futuro, os jovens possam entender essa ideia de cidade, mais amigável e mais humana.  
 
Manoel Balbino e Pedro Henrique Máximo
 

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