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Gismair Martins Teixeira

Harold Bloom e a mulher que escreveu a Bíblia

| 16.02.22 - 18:01
No contexto dos estudos culturais, a literatura abre constante diálogo com a cultura pop como um todo em sua múltipla expressão intersemiótica, segundo o crítico literário norte-americano Jonathan Culler. Exemplos do que o pesquisador estadunidense afirma não faltam.

Na década de 70 do século 20, o cantor baiano Raul Seixas dominou o cenário do rock brasileiro com letras irreverentes e de crítica social bastante imaginativas. Há quem defenda até um certo caráter profético da canção "O dia em que a Terra parou", cuja composição apresenta narrativa que de forma enigmática e assustadora remete aos primeiros meses da persistente pandemia de covid 19.

Outra marcante música de Seixas é "Eu nasci há dez mil anos atrás". Em sua letra, o cantor e compositor apresenta a figura de um mendigo que na esquina de uma grande cidade põe uma cuia de esmola no chão, pega uma viola e começa a cantar uma canção em que afirma que nasceu há dez mil anos, não havendo nada neste mundo que ele não saiba demais.

Com este mote, o narrador da música faz um instigante passeio pela história da humanidade, afirmando que viu Cristo ser crucificado, viu Maomé cair na terra de joelhos, viu Zumbi fugir com os negros para a floresta do quilombo dos Palmares, dentre outras façanhas testemunhais que somente quem viveu dez mil poderia ter realizado.

Nos acordes finais, o exótico narrador imaginado por Raul Seixas entoa os seguintes versos: "Eu fui testemunha do amor de Rapunzel / Eu vi a estrela de Davi brilhar no céu / E pra'quele que provar que eu estou mentindo / Eu tiro o meu chapéu".
A retórica do mendigo concebido pelo roqueiro brasileiro é precisa, no âmbito das artes, pois remete ao processo criativo que tem na imaginação a fonte inesgotável de suas produções. Em literatura é possível encontrar um curioso caso de retórica semelhante à do personagem criado pelo cantor baiano.
 
A influência de uma teoria
No ano de 1990 era publicada nos Estados Unidos uma obra peculiar do gênero ensaístico. Numa produção singular sob o título de "O livro de J", o renomado e polêmico crítico de literatura, Harold Bloom, defende a inusitada tese de que a parte inicial da Bíblia judaica foi escrita por uma mulher. "J" é a designação dada pelos especialistas para circunscrever um dos autores fundamentais do livro bíblico do “Gênesis”, o chamado autor Javista, que se refere a Javé ou Jeová, deus dos hebreus.

O leitor que buscar "O livro de J" com a esperança de encontrar o fac-símile de algum remoto papiro onde Harold Bloom tenha pesquisado para defender sua tese ficará decepcionado, pois não há material algum dessa natureza. Onde Bloom teria descoberto, pois, a preciosa e revolucionária informação? Ele mesmo elucida a questão. Sua descoberta tem como base a sua aguçada intuição de leitor.

Pode parecer presunção, mas quando se observa a biografia intelectual de Bloom o argumento merece ser levado em conta. De ascendência judaica, o polêmico e renomado crítico literário lecionou por mais de quatro décadas na Universidade de Yale, Estados Unidos, em importante departamento literário dessa instituição de ensino superior estadunidense.

Leitor voraz, Harold Bloom se destacou como ensaísta, produzindo um grande número de obras sobre a literatura anglófona e formulando a teoria literária denominada “angústia da influência”, em que analisa numa perspectiva freudiana a influência de um autor sobre outro. Na concepção bloomiana, William Shakespeare é a suprema influência de todos aqueles que lhe seguiram na criação literária tempo e espaço afora.

O autor de “O Livro de J” aprendeu as principais línguas da cultura literária para ler seus clássicos nos originais. Fiodor Dostoiévski, Marcel Proust, Miguel de Cervantes e Dante Alighieri foram lidos pelo crítico em seus respectivos idiomas. Dentre os seus esforços linguísticos, estudou o português brasileiro do século 19 para apreciar Machado de Assis no original. O resultado pode ser conferido em sua obra "Gênio: os 100 autores mais criativos da história da literatura", em que sustenta que o grande nome da literatura brasileira é o maior gênio afrodescendente da literatura em todos os tempos.

É fundamentado nessa bagagem cultural que Harold Bloom apresenta sua hipótese a partir da leitura da Bíblia em ídiche, variante linguística judaica ligada a suas origens de família. Quando confrontado com a inevitável pergunta sobre que provas teria de que se tratava de uma mulher que teria produzido o texto atribuído ao autor J, Bloom não se fazia de rogado e devolvia a pergunta ao interlocutor na mesma moeda, questionando-lhe que provas teria de que foi um homem quem escreveu grande parte do pentateuco bíblico veterotestamentário. Ou seja, uma retórica bem semelhante à de Raul Seixas para seu mendigo multimilenar.

Se Harold Bloom estudou ao longo de sua vida a influência entre autores, de maneira bem peculiar ele também acabou por tornar-se objeto de sua própria teoria. Em "A mulher que escreveu a Bíblia", obra vencedora do Prêmio Jabuti de 1999, o escritor gaúcho Moacyr Scliar se inspirou na intuição de Bloom sobre a autoria do importante trecho bíblico da Torá para compor a sua personagem cuja trajetória é apontada no título do romance. O escritor brasileiro utilizou em seu enredo do recurso da regressão de memória para que uma das personagens voltasse no tempo e se identificasse como a autora J que viveu na corte do rei Salomão.

Cansado da rotina de sala de aula, um professor de ensino médio que pretende largar a profissão aprende técnicas regressivas e abre um consultório. Uma de suas primeiras pacientes é uma jovem interiorana com problemas de relacionamento afetivo que encontra a cura para seus transtornos na terapia de vidas passadas, quando acessa as memórias de uma encarnação anterior em que fizera parte do harém do rei Salomão, sendo incumbida pelo sábio monarca bíblico para narrar a trajetória de seu povo.

Moacyr Scliar aproveita o espaço do romance para explorar questões importantes da cultura humana, como o problema da fealdade, que foi abordado em tratado pelo semioticista italiano, Umberto Eco, em sua obra “História do Feio”. O sábio rei bíblico incumbiu A Feia, como é designada sua esposa-escritora, de escrever a história bíblica porque não conseguia vencer o asco estético para consumar sua relação com aquela que era uma de suas cerca de setecentas esposas.

Assim, se “O Livro de J”, de Harold Bloom, tem grande potencial para desagradar aos especialistas das escrituras bíblicas, em proporção inversa apresenta enorme potencial para satisfazer os especialistas em literatura imaginativa, pois permite acompanhar pari passu o trajeto criativo percorrido pelo escritor brasileiro na elaboração de “A mulher que escreveu a Bíblia”, comparando o que Scliar absorveu e o que rejeitou do conteúdo instigante do ensaio bloomiano.

*Gismair Martins Teixeira é pós-Doutorando em Ciências da Religião pela PUC-GO; Doutor em Letras pela UFG; professor e pesquisador do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Seduc-GO.






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