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Narra a mitologia grega que o Rei Midas da Frígia caiu nos favores do deus Dionísio após resgatar um sátiro perdido em suas terras. Em gratidão pela hospitalidade e boa ação do monarca, a divindade resolveu presenteá-lo com dádiva de livre escolha por sua majestade. O rei logo solicitou a bênção do “toque dourado”, o poder de converter no mais precioso metal qualquer objeto com o simples contato de suas mãos. Saiu ele então em êxtase roçando todos os cantos de seu palácio e o arrependimento só viria quando viu sua filha transformada em estátua, com Aristóteles relatando que ele subsequentemente sucumbiu de inanição por não conseguir mais sequer manusear comida sem transmutá-la em ouro. Isto nos traz à interpretação mais comum da lenda, a de que ele acabou punido pela sua excessiva ganância. Acredito, contudo, que o real significado desta história seja mais profundo: o rei da Frígia foi castigado por buscar perverter a ordem natural das coisas, ao demandar que algo de grande valor fosse criado do nada, sem expender em contrapartida o suor e labor exigidos para tal.
Todos os governos da história inevitavelmente se rendem à perdição de Midas. Enfatizo: todos. O Império Romano utilizava como moeda corrente desde o século III a.C. o Denarius (origem etimológica de nossa palavra “dinheiro”) e inicialmente ele era feito 100% de prata. Roma ascendeu enquanto manteve sob cheque o ímpeto de depreciá-lo e ele se tornou moeda franca do comércio mediterrâneo, gradativamente substituindo seus concorrentes gregos, cipriotas e fenícios, pois estes caíram na tentação de aviltar contra seus numerários e, conforme a Lei de Gresham, dinheiro bom afasta dinheiro ruim. Todavia, para financiar sua crescente estrutura burocrática parasitária e suas frequentes expedições militares os imperadores foram gradualmente diluindo o conteúdo do denário e já sob Diocleciano no século IV d.C. a moeda era constituída essencialmente de metais sem valor, não restando qualquer traço da prata que outrora lhe conferia seu merecido prestígio e esplendor.
Este movimento inflacionário foi, indiscutivelmente, o principal fator para a queda do Império. Roma forçava o curso de uma moeda que ninguém mais aceitava como legítima e as transações comerciais que garantiam a afluência imperial foram minguando até a inexistência. Não conseguiam mais cobrar impostos de suas províncias e este vácuo político foi ocupado por eventuais invasores germânicos. Muito longe de ser episódio isolado na história, a inflação é o prelúdio inequívoco do declínio de um regime e os exemplos são incontáveis. Na China imperial a Dinastia Song inventou o papel-moeda por já não ter mais acesso a nenhum metal e os resultados foram idênticos: a economia ruiu e foram invadidos pelos mongóis do Norte, sendo que estes também repetiriam o mesmíssimo erro cento e cinquenta anos depois.
O economista francês Richard Cantillon explica porque a maldição de Midas é tão sedutora ao descrever fenômeno que leva seu nome: ao tomar para si o monopólio sobre a emissão da moeda de um território, o Estado se garante também o privilégio de ser o primeiro a despender este dinheiro surgido do éter com seu valor de face ainda pleno, já que o processo de reajuste de preços não é instantâneo e somente será sentido pelo resto da população em momento posterior. Conforme a nova massa monetária é introduzida em uma economia, uma reação em cadeia se instala e os mais prejudicados são aqueles que ocupam a base da pirâmide na qual o governo está no topo.
Uma das consequências mais nefastas da inflação é ela punir uma prática que deveríamos fomentar: a formação de patrimônio individual através de uma vida financeira prudente. Enquanto quem poupa amarga suas reservas erodindo ao longo do tempo, o devedor é beneficiado pois vê o valor real de seus débitos reduzirem. Essencialmente, a inflação sacrifica o futuro em prol do presente, pois prestigia imediatismo e gratificação instantânea em detrimento da ponderação e frugalidade. Ela embaça nossa visão do horizonte, já que nos obsta de carregar adequadamente o fruto de nosso trabalho para a posteridade. Por conta dela não conseguimos estabelecer uma relação previsível e estável com o amanhã.
Quanto maior a fidelidade da oferta monetária circulante, mais claras as regras do jogo são e mais livres estão as pessoas para acumularem capital. A criação de valor é um esforço de coordenação econômica onde tentam-se satisfazer os desejos dos consumidores através da atividade empreendedora, e imprimir dinheiro nunca substituirá esta lei fundamental. Os incentivos inflacionários do Estado vão de encontro aos do cidadão comum poupador.
No Brasil fomos condicionados a tratar a inflação, este roubo integrado ao nosso sistema monetário, com certa naturalidade, como se preços subissem por força motriz própria. Desde o começo do Plano Real nossa moeda já perdeu quase 90% de seu valor inicial. Vivemos a corrida contra a Rainha Vermelha em Alice no País das Maravilhas: um mundo em que nos movemos o mais rápido possível para permanecermos no mesmo lugar.