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Na corte de Dionísio II de Siracusa havia um bajulador chamado Dâmocles que despendia seu tempo exclamando ao rei como ele era afortunado por ocupar tal posição de autoridade, com todos os benefícios e regalias que o cargo oferecia. Dionísio então ofereceu a Dâmocles trocar de posições para que este pudesse desfrutar em primeira mão todas essas benesses e a proposta foi imediatamente aceita. O cortesão foi conduzido à sala do trono, que era ornada com tapeçaria do oriente e perfumada com fragrâncias exóticas. Ele foi servido pelas mais belas moças do reino o mais abundante cardápio de comeres e beberes, além de rodeado de riquezas e excessos que nunca conceberia nem em seus mais distantes sonhos. Quando recobrou a consciência após empanturrar-se, notou que Dionísio havia suspendido sobre o trono (e sua cabeça) uma espada, presa apenas por um mero fio de crina de cavalo. Dâmocles, temendo por sua vida, implorou para que fosse dispensado da tarefa e pudesse retornar à sua vida original, nunca mais sendo visto nos palácios sicilianos.
Esta história é tratada como alusão às ameaças iminentes que circundam aqueles que ocupam posições de poder, pois estes estariam sempre cercados de inimigos nas sombras e, portanto, nunca conseguiriam sentir-se seguros o suficiente para desfruir de suas prerrogativas em paz. Contudo, o real sentido desta lenda é mais profundo: a vida do monarca estaria em perpétuo perigo pelas responsabilidades inerentes ao cargo, e não seus privilégios.
A ideia de poder sem uma simétrica e proporcional incumbência é abominação contemporânea que causaria estranheza a qualquer soberano da pré-modernidade. Os próprios títulos nobiliárquicos do medievo são derivados de antigos termos militares romanos. “Duque”, por exemplo, vem de “dux”, que em latim informal significava qualquer comandante de tropas. Incontáveis reis morreram em batalhas liderando os regimentos de seu país, e não há evidência histórica mais convincente de um monarca tomando a linha de frente que o imperador romano Juliano, encontrado morto com uma lança persa cravada em seu peito.
Ainda, a China dinástica adotava a ideia de “mandato celestial” (Tianming), o conceito sob o qual repousava a legitimidade de seus governantes. Confúcio dizia que a sociedade espelhava a virtude que emanava do imperador, cabendo a este praticar condutas dez vezes mais irrepreensíveis do que a de um plebeu. Caso ocorresse uma enchente ou praga recaísse sobre seu povo, a doutrina confuciana entendia ser isto punição divina por ato indigno do rei, permitindo à população legalmente rebelar-se.
O escritor libanês Nassim Taleb dedica seu livro “Arriscando a Própria Pele – Assimetrias Ocultas no Cotidiano” exclusivamente a este assunto. Ele inaugura a obra relatando uma lenda sobre pescadores que haviam fisgado um grande número de tartarugas e, depois de cozinhá-las, perceberam que estes animais eram bem menos comestíveis do que imaginavam. O deus Mercúrio passava por ali e foi chamado pelo grupo para se juntar à refeição. Detectando que fora convidado apenas para que o bando pudesse se livrar logo daquela comida indesejada, ele forçou todos a engolir a janta, estabelecendo assim o princípio consagrado no antigo adágio Ipsi testudines edite, qui cepistis (quem pescou as tartarugas, que as coma primeiro).
Trago estes inúmeros exemplos por ilustrarem a noção de justiça que permeava a antiguidade, bem como a estrutura ética que compunha a matriz subjacente que garantiu a sobrevivência da humanidade. Este processo foi se erodindo ao longo do tempo até atingir o seu ápice no mundo contemporâneo.
O provérbio com “grandes poderes vêm grandes responsabilidades” não é invenção de super-heróis de quadrinhos, mas data de tempos pré-bíblicos. E este compromisso não era tratado apenas como juramento vazio, pois a liderança envolvia sacrifícios muito maiores que qualquer bônus conferido pelo poder. De um líder tribal era esperado que guiasse as caçadas, como bem compartilhar com seu grupo a maior parte dos resultados.
Na nossa sociedade almejar poder se torna mais cada dia mais atrativo. Os líderes governamentais estão cada vez mais impermeáveis das responsabilidades de seus atos e as vantagens cada dia mais polpudas. Se na Europa da Idade Média a função do soberano era garantir a segurança de seus súditos ao repelir frequentes invasões estrangeiras, hoje o Estado brasileiro está presente em todos os aspectos de nossa vida. Se naquele período o monarca raramente extraía mais do que 5% da riqueza criada em seu território, o Estado brasileiro hoje controla quase metade de tudo que aqui se produz. As sociedades antigas eram governadas por tomadores de risco, e hoje somos administrados por aqueles que transferem o risco a nós. No Brasil de 2022 Dâmocles se acorrentaria ao trono ao invés de fugir.