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GISMAIR MARTINS TEIXEIRA

O dramático diálogo entre dois clássicos de Roberto Carlos

| 16.09.22 - 10:44
O conceito de intertextualidade se origina do termo “diálogo”, que foi originalmente trabalhado pelo filósofo e pensador das artes russo, Mikhail Bakhtin, no vasto conjunto de sua produção escrita, sob a rubrica geral de dialogismo. Retomado pela semioticista búlgara-francesa, Julia Kristeva, o conceito se fixou, passando a receber a contribuição de um sem número de teóricos diversos.

No artigo “Teoria do Texto”, concebido para a apresentação do tema à Enciclopédia Universal Francesa, Roland Barthes afirma: “A intertextualidade não se reduz evidentemente a um problema de fontes ou de influências; o intertexto é um campo geral de fórmulas anônimas, cuja origem é raramente localizável, de citações inconscientes ou automáticas, feitas sem aspas”. Barthes é, portanto, um dos diversos teóricos que se debruçaram sobre a conceituação oriunda da proposição bakhtiniana.

Na obra “O Prazer do Texto”, ele dirá: “Saboreio o reino das fórmulas, a derrubada das origens, a desenvoltura que faz vir o texto anterior do texto ulterior. (...) E isso é bem o intertexto: a impossibilidade de viver fora do texto infinito – que este texto seja Proust, ou o jornal cotidiano, ou a tela da televisão: o livro faz o sentido, o sentido faz a vida”. Se o intertexto é esse campo geral de fórmulas anônimas, de origem difícil de ser localizada, às vezes seu mapeamento oferece surpreendentes possibilidades e coincidências instigantes. É o que acontece com duas canções clássicas do repertório do cantor brasileiro Roberto Carlos.

Com show programado para o dia 17 de setembro na capital goiana, no Ginásio Internacional Goiânia Arena, o ícone da Música Popular Brasileira possui um vastíssimo repertório, construído por décadas de uma brilhante carreira musical. Dentre seus incontáveis sucessos, duas músicas clássicas de sua discografia dialogam entre si de forma surpreendente e dramática. São elas:

“As Flores do Jardim da Nossa Casa” e “Resumo”. A primeira foi lançada em 1969. A segunda veio a púbico em 1974.

“As Flores do Jardim da Nossa Casa” traz um temática autobiográfica bastante pungente. Segundo noticiou a mídia em 2021, quando da morte do filho de Roberto Carlos, Dudu Braga, aos 52 anos de idade, vitimado por um câncer do peritônio, essa canção foi composta em 1968 na ocasião em que o artista viajou à Holanda com a família para tratar de grave problema ocular do filho recém-nascido. Com poucos dias de vida, Dudu Braga foi submetido a mais de uma cirurgia para a correção do problema, um glaucoma congênito.

Enquanto aguardava o resultado, Roberto Carlos escreveu “As Flores...” inspirado pelas formosas plantas do jardim do hospital. A música seria lançada no ano seguinte, constituindo-se em um dos grandes sucessos do artista. De sua letra, cuja execução performática pode ser conferida no link, constam os seguintes dizeres: “As flores do jardim da nossa casa/Morreram todas de saudade de você/E as rosas que cobriam nossa estrada/Perderam a vontade de viver//Eu já não posso mais olhar nosso jardim/Lá não existem flores, tudo morreu pra mim (...)”. 

Tanto a letra da música quanto a interpretação de Roberto Carlos demonstram a pungente dor de um pai que aguarda em um hospital pelos resultados de um tratamento complexo e doloroso a que um filho recém-nascido se submete para buscar uma melhor condição de vida futura. Apesar do drama, a esperança comparece na composição. Após elencar as tormentas da alma, expressas nos versos em que diz que “O vento carregou todas as flores/E em nós a tempestade desabou”, a esperança de dias melhores é expressa nestas linhas: “Mas não faz mal/Depois que a chuva cair/Outro jardim um dia/Há de reflorir”.
           
A citação sem aspas
Roland Barthes formula a extraordinária abrangência do intertexto como uma espécie de citação sem aspas, conforme mencionado. Conforme outros teóricos, essas citações seriam retiradas de uma metafórica biblioteca universal. Neste contexto, a canção “Resumo” caracteriza bem a referencialidade sem aspa. Composta por Eunice Barbosa e Mário Marcos, a letra é uma obra-prima que, somada à melodia e à interpretação de Roberto Carlos, cala fundo na alma numa perspectiva existencial marcante. A música consta do disco de 1974 do cantor.

Em sua composição, cuja interpretação pode ser conferida no link, o ouvinte pode conferir essas linhas que remetem de forma surpreendente ao contexto de “As Flores do Jardim da Nossa Casa”: “Eu sou o consumo de um sol sem calor/Enfim sou resumo do riso e da dor/Eu colho a tristeza em forma de flor/Na paz da certeza onde canta o amor/Qual sombra da noite de um céu nevoento/Que canta tristeza sou eu a cantar/Qual mente que vai aos pés do infinito/Gritando, gritando, sou eu esse grito”.

Nos versos iniciais da música, a imagem da folha perdida no vento reitera a imagética da natureza como elemento em profunda sinestesia com o espírito humano em seus cismares através das eras: “Qual folha que vaga sem rumo e sem vida/No espaço perdida sou eu a vagar/Qual chuva correndo nos olhos do tempo/Nos mares crescendo sou a chorar”.

Ao fazerem constar da composição a nota de que o eu poético é o resumo do riso e da dor, os compositores fazem com que o ouvinte familiarizado com a trajetória artística de Roberto Carlos seja direcionado às alegrias juvenis da jovem guarda dos anos 60 do século passado, bem como à realidade contrastante de dor, céu nublado, flores que morrem retratando a tristeza da imensa dor de um pai aflito.

Se Eunice Barbosa e Mário Marcos tinham em mente a trágica perspectiva da composição de “As Flores do Jardim da Nossa Casa” no processo da composição de “Resumo” é difícil saber. No entanto, o diálogo contundente entre ambas as letras referenda o pensamento em torno das nuances ora sutis, ora nem tanto, daquilo que os teóricos das letras denominam de intertexto.

Ambas as composições, performadas por Roberto Carlos, configuram assim um instigante exemplo das complexidades presentes no conceito de intertexto, que permeia o fazer artístico em suas mais variadas expressões e direcionamentos.
 
*Gismair Martins Teixeira é pós-doutorando em Ciências da Religião pela PUC-GO; doutor em Letras pela UFG; professor e pesquisador do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Seduc-GO.
 
 


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