No contexto da vida citadina, quando uma história fantástica e recorrente se desenvolve em determinada localidade, costuma-se designá-la pela expressão “lenda urbana”. No âmbito da rede mundial de computadores, algumas histórias têm já assumido foros de lendas do mundo conectado. Uma pesquisa rápida mostrará, por exemplo, a existência de um grande número de indivíduos identificando-se como viajantes do tempo. No geral, apresentam evidências para lá de canhestras quando solicitados a provarem suas alegações mirabolantes.
Outra história bem peculiar, porém, apresenta uma relação curiosa com as lendas da internet e com a filmografia de Hollywood que vai estabelecendo vínculos cada vez mais estranhos com a realidade. No mundo on-line é possível encontrar a narrativa de que uma jovem chamada Sophia Stewart teria apresentado uma história de ficção científica a editores que, aparentemente, não demonstraram interesse. Mais tarde, ao assistir ao filme “Matrix”, de 1999, a jovem teria reconhecido sua história copiada sem os devidos créditos e recompensas financeiras.
Mais que isso; seu roteiro teria sido duplamente apropriado. Isto porque seu enredo se compunha das obras que no cinema se constituíram nos filmes “Matrix” e “Exterminador do Futuro”. Ambas as histórias, que de fato se entrelaçam maravilhosamente, abordam o extermínio de grande parte da humanidade por conta de uma Inteligência Artificial que desencadeia um apocalipse nuclear e tenta de todas as formas exterminar o restante da espécie humana, lançando mão até de expedientes como a viagem no tempo com a finalidade de eliminar o líder da resistência dos humanos antes mesmo que ele nascesse.
Os dois enredos cinematográficos são por demais conhecidos dos cinéfilos, projetando no mar alto da cultura pop a reflexão em torno desse artefato singular, a Inteligência Artificial, que a cada dia que se passa vai tornando-se parte da realidade e espantando a todos com os prodígios que prenunciam a sua inserção no processo cultural como um todo. A propósito disso, alguém teria comentado de maneira jocosa que se a traquitana computacional realizar os piores prognósticos a seu respeito, “Matrix” e “Exterminador do Futuro” serão realocados na categoria de documentário.
Em “Perdidos no Espaço”, série televisiva norte-americana que se encontra no catálogo da Netflix, a saga de Neo e John Connor, personagens centrais em “Matrix” e “Perdidos no Espaço”, é redimensionada em nível cósmico. A série é um remake da versão original produzida nos anos 60 do século passado. Em sua narrativa, uma família se perde no espaço enquanto viajava para outro sistema planetário para colonizá-lo, fugindo de uma Terra exaurida em seus recursos naturais, o que tem se caracterizado como um tema recorrente na exopoética recente do cinema.
No contexto narrativo, a família Robinson enfrenta mil peripécias para retomar o curso para o objetivo original de sua viagem. Entre uma aventura e outra, encontra-se ela com um robô altamente tecnológico que desenvolve uma afeição pelo caçula da família, o jovem Will Robinson. Nesta paródia espacial da família Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, descobre-se que a avançada máquina faz parte de uma coletividade congênere, fruto de Inteligência Artificial interplanetária que dizimou seus criadores biológicos. É a versão cósmica da Skynet de “O Exterminador do Futuro”.
No entanto, e na outra ponta do espectro ficcional, a aclamada série da cultura pop geek, “Star Trek”, em sua narrativa astropoética apresenta uma realidade em que a Inteligência Artificial se desenvolve de maneira harmônica com a humanidade. Utilizada para cálculos tecnológicos de alcance incomensurável no universo de “Jornada Nas Estrelas”, nome com que a série se celebrizou no Brasil, a I.A. da humanidade de a quatro séculos no futuro criou um espaço de diversão que teria seus avós nos atuais óculos de realidade virtual.
Em uma sala da astronave USS Enterprise, reproduz-se toda e qualquer história que se possa imaginar para a diversão imersiva das personagens. Batizada de Holodeck, a interface tecnológica permite que o seu usuário interaja com seus heróis da forma mais realista possível. Caso se queira, por exemplo, pode-se embarcar em um dos botes de Ahab, o capitão de “Moby Dick”, e enfrentar a enorme baleia branca com todas as sensações de realidade. Óbvio que ninguém escolherá ser dilacerado pelo grande cetáceo. Mas se escolher, mecanismos de segurança da I.A. vão impedir, bem ao contrário da sua irmã malvada de “Matrix” e “Exterminador do Futuro”.
Como se pode ver, a eterna dicotomia de bem versus mal se projetou em mais um nicho da tecnologia, pondo em evidência sua natureza ontológica. Essas narrativas icônicas da cultura pop dialogam de maneira precisa com o momento atual, em que autoridades em Inteligência Artificial e estudiosos de tecnologia têm alertado para o risco de que as I.As. saiam de controle, vindo a constituir-se risco para a humanidade.
Um dos nomes mais célebres a chamar a atenção para o problema é o físico Stephen Hawking, que alertou pouco tempo antes de sua morte ocorrida em 2018 para os riscos implícitos nesse tipo de tecnologia. Em que pese os possíveis exageros da ficcionalidade, um dano imediato que se apresenta no horizonte é o da extinção em massa de empregos, cujas atividades passarão a ser exercidas com muito mais eficiência pelos recursos da Inteligência Artificial. Esse risco, no entanto, ainda se configura como algo administrável, mesmo que represente um desafio institucional para os gestores governamentais.
Caso, porém, as coisas saiam de controle de maneira mais incisiva, aí sim a humanidade estará diante da caixa de Pandora desmesuradamente aberta. É um momento civilizacional, em nível tecnológico, de encruzilhada, quando o ser humano se encontra alternativamente, em relação à Inteligência Artificial, entre a Skynet e o Holodeck. Quem viver verá, para além do trocadilho infame.
*Gismair Martins Teixeira é professor, doutor em Letras e Linguística e pós-doutorando em Ciências da Religião