Os pesquisadores franceses de antropologia, Marión Aubrée e François Laplantine, publicaram em livro o resultado de anos de pesquisas em torno do espiritismo francês e sua forte presença no Brasil. No mapeamento que fazem sobre a história dessa expressão de religiosidade franco-brasileira na obra “A Mesa, O Livro e Os Espíritos: Gênese e Evolução do Movimento Social Espírita entre França e Brasil”, os autores assinalam o engajamento de importantes escritores do século 19, como George Sand e Victor Hugo, nas ideias espiritistas.
Ambos os autores citados por Aubrée e Laplantina são de nacionalidade francesa. No entanto, a obra registra a enorme difusão que os fenômenos mediúnicos tiveram no período que antecedeu a codificação do espiritismo por Allan Kardec. Dessa forma, no período também conhecido como oitocentista grande parte dos países tiveram contato com o fenômeno das mesas girantes, conforme assinalam os antropólogos franceses em “A Mesa, O Livro e Os Espíritos...”.
A literatura, através de importantes autores de outras nacionalidades, que não a francesa, também se interessaram pela vasta fenomênica espiritista, o que em alguns casos se materializou com a presença de elementos da doutrina kardeciana em narrativas literárias. Mas não foi somente no século 19 que as produções de literatura se mostraram sensíveis ao fenômeno mediúnico e doutrinário do espiritismo. Adentrando o século 20, nomes significativos do campo das artes literárias também continuaram a ecoar os postulados do espiritismo em suas concepções narrativas espraiadas pelos mais diversos gêneros.
Nesta perspectiva, uma das produções literárias mais significativas da história da literatura é a série de romances que constitui uma produção enfeixada sob o título geral de “Em Busca do Tempo Perdido”, de autoria do escritor francês Marcel Proust.
Numa das mais recentes traduções brasileiras, realizada por Fernando Py, a produção proustiana se encontra dividida em sete volumes. Versão lusitana anterior, traduzida por Maria Gabriela de Bragança, dividiu a obra de forma diferente, seccionando o volume “O Caminho de Guermantes” em dois segmentos. O grande edifício literário foi publicado entre os anos de 1913 e 1927.
“Em Busca do Tempo Perdido” representa um experimento literário peculiaríssimo no contexto cultural do século 20. Seu autor realizou verdadeira façanha narrativa ao esquadrinhar o psiquismo envolto pelos mistérios da passagem do tempo. O tradutor Fernando Py esclarece que a história do conjunto romanesco proustiano poderia ser contada em dez páginas; no entanto, o mergulho na condição humana e na vida dândi de seus personagens ocupa sete volumes que categorizam a obra como sendo um dos mais extensos romances já produzidos na história da literatura, tanto no sentido quantitativo quanto no qualitativo.
Ao longo das seções componentes do grande romance, Marcel Proust vai fazer referências ao problema da morte e da visão que o espiritismo de Kardec projeta sobre o angustioso destino que aguarda todas as formas de vida. No quinto romance do construto narrativo do autor francês, intitulado “A Prisioneira”, o narrador faz referências à morte de uma das personagens emblemáticas da obra, o escritor Bergotte. Conforme o crítico literário norte-americano, Harold Bloom, Proust se destaca entre seus pares canônicos pela sua imensa capacidade de caracterização das personagens de sua obra.
A morte de Bergotte, minuciosamente descrita pelo autor em minudências estéticas impressionantes, traz uma afirmação seguida de reflexões que remetem diretamente à doutrina espírita fundada por Allan Kardec. Ao narrar o momento fatal, Proust sentencia, na consagrada tradução de Fernando Py:
“Estava morto. Morto para sempre? Quem o poderá dizer? Certo, as experiências espíritas não fornecem a prova de que a alma subsista, como também não a fornecem os dogmas da religião. (...) Todas essas obrigações (éticas e morais) que não encontram sanção na vida presente parecem pertencer a um mundo diferente, fundado na bondade, no escrúpulo, no sacrifício, mundo diferente deste e do qual saímos para nascer nesta terra, antes talvez de voltar a viver nele sob o império dessas leis ignotas a que obedecemos porque trazíamos em nós o seu ensinamento, sem saber que aí as traçara – essas leis de que nos aproxima todo labor profundo da inteligência e que são invisíveis, nem sempre, aliás! – para os tolos. De sorte que não há inverossimilhança na ideia de não ter Bergotte morrido para sempre”.
Em passagens anteriores de “Em Busca do Tempo Perdido”, Marcel Proust dialoga com os fenômenos e os postulados espíritas para trazer ilações significativas para sua narrativa. Harold Bloom, crítico literário estadunidense, entende que o escritor francês realiza em seu colossal romance a literatura imaginativa ligada ao gênero sapiencial, embora não o veja lendo obras como o clássico hindu “Bhagavad Gita”. Neste contexto, as considerações proustianas acerca de uma vida anterior de onde princípios éticos e morais mais elaborados povoem o subconsciente do indivíduo são possibilidades verossímeis mais instigantes que a própria evidência material de uma sobrevivência à morte corporal.
Ao elaborar em “Os Irmãos Karamazov” entrecho em que o diabo dialoga com Ivan Karamazov, o escritor russo Fiodor Dostoiévski antecipara Marcel Proust, ironizando as manifestações mediúnicas como provas do outro mundo, através da fala rabugenta da figura diabólica que dialoga com um dos irmãos Karamazov. Tanto Proust quanto Dostoiévski se servem da figura do alter-ego, que é recuperada pelo teórico da literatura Wayne Booth em sua obra “A Retórica da Ficção” para teorizar sobre a figura do autor implícito, que reverbera em muitos aspectos da narrativa literária a opinião do autor real de uma determinada obra mediante as suas personagens, segundo Booth.
?Assim, Marcel Proust, que estabelecerá o diálogo com o conjunto conceptual do espiritismo kardeciano em aproximadamente sete passagens dos sete romances-capítulos de “Em Busca do Tempo Perdido”, traz no recorte exposto a interessante perspectiva de que independente da maior ou menor assertiva do fenômeno mediúnico, as probabilidades culturais em torno da sobrevivência do espírito à morte do corpo físico é um dado de verossimilhança digno de nota.
*Gismair Martins Teixeira é doutor em Letras pela UFG com Pós-Doutorado em Ciências da Religião pela PUC-GO. Professor e pesquisador do diálogo entre a religiosidade e a literatura.