Este ano completou-se 70 anos da realização de uma espécie de "rebatismo cultural" de Goiânia, que foi o 1° Congresso Nacional de Intelectuais (e Exposição Nacional de Artes Plásticas), evento que se compara, mantidas as devidas proporções regionais, à Semana de Arte Moderna de 1922, ocorrido em São Paulo, em termos de relevância histórica estético-cultural, contando com a presença de laureados artistas como Pablo Neruda e Jorge Amado (para ficar só na literatura). No entanto, ao contrário, do acontecimento histórico equivalente paulistano de 22, o Congresso de 54, não tem ganhado destaque merecido na agenda midiática e política nem mesmo da cidade que a sediou. A que tipo conveniência ou trauma social e político se deve esse esquecimento coletivo de tamanha monta? É o que se propõe filosofar mesmo que de forma embrionária e diletante.
A despeito do desprezo, conservado em conserva de pequi com conservante pelo (neo)conservadorismo de conservatório em Goiás, por nossa memória política, cultural e urbana, a Associação de Egressos da UFG, na pessoa do seu presidente, Eliomar Pires Martins, organizou a "Mesa Redonda 70 anos do 1º Congresso Nacional de Intelectuais no Porto do Escritor", na União Brasileira de Escritores (UBE) – seção Goiás com: escritor e professor da PUC-RJ Dr. Gilberto Mendonça Teles e os historiadores de arte goiana Fernando Santos e Francisco Barros. O evento contou com a presença também de dezenas de intelectuais do presente, porém guardiões do futuro da memória do protagonismo cultural goiano, do quilate do professor e prefeito Pedro Wilson (fundador do PT GO e ex-superintendente do IPHAN-GO), do Dr. Fred Le Blue Assis (idealizador do GT Goiânia 2030), do Edmar Carneiro (Diretor do Instituto Gustav Ritter), entre outros vultos proeminentes.
Lembro-me que, quando fiz uma disciplina de vídeo na Comunicação Social na UFG em 2003, escolhi fazer o documentário "Obras Primas" sobre o patrimônio cultural e natural que é o Museu de Arte de Goiânia (MAG), localizado no Bosque dos Buritis, tendo entrevistado o pintor e fundador do MAG Amaury Menezes, que explanou para mim sobre esse Congresso, cujo legado constitui-se parte do acervo do Museu. O tema dormitou por mais de 20 anos no meu inconsciente, acordando no dia 04 de maio de 2024 da sua "pasmaceira" de gigante goiano adormecido, pela voz resiliente do eminente imortal professor e escritor Gilberto. É patente a deficiência comunicacional intergeracional, incapaz de criar consciência patrimonial em Goiás, que tem, inclusive, um dos maiores acervos naturais vegetais e hidrográficos do mundo, cuja paisagem tem um infinito potencial turístico subaproveitado.
Como mencionou Belkiss Spencière sobre complexados talentos musicais, relegados e segredados em ambientes familiocrátas da elite goiana, acredito que a maioria da arte produzida em Goiás de qualidade está guardada com bolor, como joia de família em baús de porão, trancado a 7 chaves, a 7 palmos do chão. Nesse sentido, sabendo também dos estigmas que sofrem os artistas associados à insanidade mental, homossexualidade e pobreza material e marginalidade entorpecente e/ou periférica, é necessário um esforço de despsiquiatrização e patrimonialização da cultura em Goiás. Não por outro motivo, por meio do movimento Artetetura e Humanismo, tenho despertado, desde 2019, a classe artística brasileira para o papel relevante que arte urbana, pensada como política pública intersetorial (social, urbana, cultural, sanitária e esportiva) pode causar no territórios, sobretudo, de maior vulnerabilidade social, para criar pertencimento local, autoafirmação psicossocial e empoderamento narrativo.
Infelizmente, no dia seguinte ao encontro na UBE-GO, que tem estado atuante na salvaguarda da pira literária goiana na presidência de Ademir Luiz e Rafael Fleury, acordamos com mais uma denúncia de corrupção da Gestão "Rogério da Cruz". No caso, envolvendo, novamente, uma operação na sede a Secretaria de Infraestrutura Urbana de Goiânia (Seinfra), que é investigada pela Polícia Civil de Goiás (PCGO) por crimes de fraude em licitações e contratos, corrupção ativa, corrupção passiva, constituição de organização criminosa e lavagem de dinheiro. Por causa desse desamor com os concidadãos, a cidade e sua imagem coletiva, nossa capital, tida como berço da modernidade é hoje representada, de forma contumaz, no imaginário urbano como o cemitério da democracia no Brasil, tem sido, preferencialmente, noticiada com ampla cobertura na imprensa nacional, em função de tragédias acidentais (morte de Marília Mendonça), criminais (caso Amanda Partata, Lázaro Barbosa, Fábio Escobar e Leonardo Pareja), médicas (caso Fábia Portilho), nucleares (Cs 137), políticas (título de cidadania goiana a Jair Bolsonaro) e passionais (sofrência).
É preciso somar forças para ousar redirecionar os rumos da cultura em Goiás, permitindo maior divulgação e crítica cultural, seja parindo novos rebentos artísticos ou direcionando artisticamente as cobras criadas da cena cultural goiana e goianiense não comercial, pouco contemplada pelo mass mídia preciosista e, dependendo, da posição política, pela gestão pública clientelista. Em como a arte se faz onde o povo está, é imperativo garantir a livre circulação social e cultural da juventude no espaço público, mormente, em potenciais zonas de produção criativa autónoma como a Rua do Lazer, cujos frequentadores vem sendo recorrentemente dispersados e criminalizados, ficando entre a cruz da guarda municipal do pastor Cruz e a vara de tocar gado da polícia do coronel Caiado. Situação desaglutinadora de antipolitização essa que compromete todo e qualquer projeto de revitalização urbana do Centro histórico da Goiânia que se quer desidratar e despopularizar, justamente, por sua memória política democrática e cultural moderna.
A situação da democracia representativa e saúde mental com a monocultura do caidismo (sertanejo universitário, coronelismo político e agronegócio) nunca esteve tão desfavorável ao pensar poético e plural, estando Goiás privado de uma oposição alternativa coesa ao consenso autoritário de um tipo de ruralidade machista e antidemocrática que se faz ressoante em Goiânia, em sintonia chula com o bolsonarismo bossal.
Cabe à cultura dos novos intelectuais da elite e da periferia em Goiás fazer o papel de contraponto à preguiça mental e a opressão política, mostrando realidades, mentalidades e memórias ocultas, que estão sendo escamoteadas por interesses macro e micropolíticos mesquinhos e perversos, de favorecer só um modus operandi de viver e pensar a goianidade, que, por sinal, criou um tipo de regionalismo que defende o pequi, mas não o Cerrado. Somente assim, poderemos voltar a planejar os termos de uma nova Goiânia, já que a primeira não deu certo (nem mesmo Goiás, ao contrário do slogan estatal) , com o atual governador antimudacionista da família Caiado, contra quem tanto lutou Pedro Ludovico, morando e reinando no epicentro da capital que é o Palácio das Esmeraldas na Praça Cívica.
O Goiânia 2030, que represento, conclama os cidadãos de outras Goiânias invisíveis e possíveis para, a partir da diversidade de opiniões, credos, culturas, artes, ideologias e economias, rebatizarmos a cidade, na iminência de 100 anos do seu projeto simbólico enquanto capital da revolução de 1930. Mas um rebatizado conectado aos objetivos e metas de desenvolvimento sustentável da Agenda global 2030 da ONU. Visa-se, assim, evitar tragédias "naturais" como as causadas no Rio Grande do Sul, pelas mudanças climáticas de procedência antrópica, e minorar, destarte, o desvirtuamento do projeto pioneiro político, cultural, urbano e ambiental pioneiro e único da primeira capital moderna do Brasil, digna de se tornar patrimônio da humanidade.
Dia 5 de julho de 2024, haverá a data comemorativa do Batismo Cultural de Goiânia (agora, sim, o oficial), que contou com presença de artistas, cientistas e intelectuais, tendo tido como atração principal a missa campal de Dom Emanuel Gomes de Oliveira e do arcebispo Dom Aquino Correia ds Cuiabá, em frente do Palácio do governo. A falta de educação patrimonial que nos leva a descaracterização da identidade e tradição moderna arquitetônica e sociológica, nos obriga a fazer este aviso de última hora, porque é provável que a data iminente possa passar em branco, como, praticamente, passou a dos 70 anos do Congresso Nacional dos Intelectuais no dia 14 de fevereiro de 2024.
Fred Le Blue é pós-doutor em Artes UFMG, doutor em Planejamento Urbano UFRJ, mestre em Memória Social Unirio, graduado em Comunicação Social UFG