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Adalberto de Queiroz

A China vista pela leitura (parte 4 - A)

| 19.07.24 - 16:05 A China vista pela leitura (parte 4 - A) Escritor chinês Yan Lianke (foto: Lit Hub)Diante da obra do escritor chinês Yan Lianke (1958), este cronista vive um dilema, pois o desejável é falar apenas de literatura e viagens – tema central desta série de crônicas, sem criar um texto que se transforme em gangorra ou uma pesquisa entre se você é contra ou a favor do regime ou governo da China, o partido único, etc., mas o cronista ama a literatura chinesa e seu povo e isso é impensável.
 
Portanto, penso: é possível falar apenas de literatura e esquecer os males do governo, onde talvez um caso notável seja pensar em Dostoiévski e no czar Nicolau I ou em Alexander Solzhenitsyn e o regime comunista soviético.
 
Nessa hesitação, muito antes de escrever sobre esse autor que tem na ironia e na sátira seus pontos fortes, seu meio de expressão, consultei amigos chineses sobre a literatura de Yan Lianke e voltei aos seus dois romances que ele havia lido antes da recente viagem à China - "O sonho da aldeia Ding" e "A serviço do Povo".
 
Dos comentários dos meus amigos chineses – uma professora e outra escritora, cujos nomes omiti por questões de privacidade, tirei o essencial que me incentivou a continuar.
 
Uma delas, que mora em Hong Kong, me disse: “A tensão e o poder das suas criações não advêm de perspectivas institucionais e políticas, mas das suas origens. Quando criança, crescendo em um campo pobre e em uma terra árida, ele tem o hábito de “fugir” do “mundo” original para o mundo da ficção. Isto é verdade para a literatura. Existe um provérbio chinês – parecido com o brasileiro – que diz “não tem como fazer alguma coisa [uma omelete, no ditado brasileiro] sem quebrar alguma coisa [o ovo]”; e no contexto o verbo quebrar (destruir) tem mais a ver com se opor ao que precisa ser corrigido do modelo original, refere-se à verdade e ao eu autoral. Remova o original, quebre-o e comece algo novo.”
 
Aqui, o termo brasileiro desconstrução parece mais apropriado ao cronista, pois não se trata de uma estratégia de revolução, mas de renovação.
 
Ainda segundo minha correspondente: “A maior construção da literatura é talvez uma espécie de destruição” (ou desconstrução). Este é um conceito criativo que Yan Lianke tem utilizado ao longo dos anos e é esta a ideia que transmite aos jovens que procuram os seus conselhos”, conclui.
 
Com profunda crítica social e perspectiva humanista, Lianke declara frequentemente que “a maior construção da literatura é a destruição” – “destruição” aqui referindo-se ao desafio e à desconstrução de ideias tradicionais, ideias antigas e estruturas sociais, em consonância com a crítica e modelos satíricos inerentes à criação literária. Esta “destruição” não é uma destruição literal, mas uma destruição criativa, através do poder da literatura para expor problemas, desencadear ideias e, assim, promover o progresso e a mudança na sociedade. No romance O Sonho da Aldeia Ding, notamos dois fatos relevantes - as epígrafes bíblicas e o narrador, que é uma espécie de Brás Cubas mirim, sem a elaboração de um personagem Machadiano, mas da mesma forma que nos guia por toda a narrativa o menino Quiang, morto aos 12 por envenenamento.
 
Havia, sim, uma hipótese de destruição dos livros de Lianke, pela censura em diversos níveis em seu país, no entanto, coisas positivas acontecem em sua obra que não é considerada majoritariamente antirrevolucionárias, pois ocorre uma acomodação mais pacífica entre a escrita e a censura.
 
(Imagem: reprodução)

Yan Lianke nasceu em 1958 na província de Henan e se tornou um aclamado escritor chinês, conhecido pelas suas obras que frequentemente tratam de questões sociais e temas políticos sensíveis no seu país. A sua carreira literária é marcada por uma combinação de realismo social e elementos de sátira e um certo conteúdo surrealista.
 
Seus livros muitas vezes enfrentam censura do governo chinês devido às suas críticas francas às políticas governamentais e às condições de vida das pessoas comuns e, apesar de censurado, o trabalho de Lianke recebeu fortes respostas no ambiente da Internet e atraiu a atenção de editoras de todo o mundo, tendo sido publicado em 17 países, incluindo o Brasil.
 
"O Sonho da Vila Ding" é um romance convincente que conta a trágica história de uma pequena aldeia rural na China devastada pela epidemia de AIDS na década de 1990, onde se espalhou a venda de sangue para mercados ilegais apoiados pelo governo local.  O livro revela as consequências devastadoras desta prática da venda do sangue sem obediência a critérios de assepsia. O sonho era ter casa e utensílios domésticos modernos – e essa possibilidade de enriquecimento rápido deslumbrou a população, mas o dinheiro foi levantado explorando a dor, o sofrimento e o colapso da comunidade – do comércio de sangue ao comércio de caixões, a dor arde no sonho da aldeia Ding.
 
A epígrafe provém de um texto bíblico (Gn. 40,41) e transcreve os sonhos do garçom do Faraó, de seu padeiro e do próprio líder egípcio. O simbolismo desses sonhos dá o tom para a história que se segue em "O sonho da aldeia Ding". No silêncio da aldeia, no primeiro capítulo, a desolação aparece como no sonho do Faraó: “as vacas feias e magras comeram as sete vacas bonitas e gordas... as orelhas finas comeram as sete orelhas gordas e cheias”.
 
Ora, os sonhos são uma constante nos contos de fadas, nos romances, nos poemas e até nas histórias taoístas, existindo até uma pequena, mas significativa casa-museu: “A Casa dos Sonhos”, como nos conta Cláudia Trevisan: “é um pequeno edifício situado numa aldeia com 50 mil habitantes, a 440 km de Pequim, que exibe pinturas que reproduzem sonhos de personagens de obras clássicas, imperadores, filósofos e poetas. Entre os sonhos retratados no museu está o de Zhuang Zi (369 - 289 a.C.), um filósofo taoísta que sonhou que era uma borboleta e quando acordou não sabia se havia sonhado que era uma borboleta. ou se houve uma borboleta que sonhou, foi ele. Também aparece Li Bai (701 -762), grande poeta da dinastia Tang (618 - 907) e um dos maiores da China, que celebrava a natureza, a lua e a bebida. Claro que existe uma imagem de Confúcio (551 - 479 a.C.), o filósofo que marcou como nenhum outro a identidade chinesa" – afirma Cláudia.
 
De acordo com um estudo de Roy Bing Chan em "The edge of know (Dreams, History, and Realism in Modern Chinese Literature" da University of Washington Press, 2017): “Os sonhos há muito desempenham um papel na cultura e crença tradicionais chinesas e muitas vezes eram considerados uma ocasião em que as comunicações do reino numinoso chegavam às pessoas durante o sono. Os sonhos eram um componente importante tanto na adivinhação judicial quanto na adivinhação popular. Eles também são um tema proeminente na filosofia chinesa. Os Analectos (Lun Yu), uma compilação de ditos atribuídos a Confúcio (século VI aC), registram o sábio sonhando regularmente com o duque de Zhou, um dos míticos fundadores da civilização chinesa. Muitos estão familiarizados com a passagem do “Capítulo Interno” do Zhuangzi intitulada “Discussão sobre Tornar Todas as Coisas Iguais” (Qi wu lun), na qual o filósofo reflete sobre se ele sonhou em ser uma borboleta ou se é realmente uma borboleta que sonhou de Zhuangzi. Esta parábola ilustra o constante fluxo e instabilidade da realidade. No Budismo, o sonho é frequentemente usado como uma metáfora para a ilusão do mundo fenomênico, subestimando assim a necessidade de abandonar os próprios apegos. A literatura tradicional chinesa costuma fazer uso dos sonhos como um dispositivo narrativo que permite aos personagens entrarem em mundos alternativos ou se reunir com deuses e espíritos. Muitas vezes também aparece como um conceito narrativo através do qual os personagens aprendem a reconhecer a efemeridade da vida.” – O sonho indica o caminho que percorre Yan Lianke para construir uma narrativa forte e carregada de simbolismo, contando a história da aldeia Ding... (Leia a sequência deste ensaio na semana que vem...)

Adalberto Queiroz é jornalista e poeta, membro da Academia Goiana de Letras e autor de Os fios da escrita (ensaios literários, 2017)


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