Dia desses estive com um amigo que já chegou à fase em busca de sossego. “Buzina, escapamento de carro e moto, ambulância, bombeiros… é muito incômodo, não consigo descansar mais”, reclamava ele dos barulhos da cidade grande e, me encarando, na esperança de que eu sugerisse que ele se mudasse para o interior. Enquanto eu chegava a esta conclusão, ele atropelou meus pensamentos: “Queria me mudar para Nova Veneza…”, e me encarou esperando, novamente, que eu lhe desse uma espécie de consentimento. Fiquei mudo, enquanto pensava: “Mal sabe ele, coitado. Não vou incentivar para não ser o culpado pela frustração futura”. A amizade poderia se findar.
Por um tempo fiquei imaginando o Reginaldo (nome fictício do meu amigo que pediu para não ser citado) com os olhos rachados, por causa dos vasos sanguíneos saltados e cansados pela falta de um sono de qualidade, por, pelo menos, 6 horas por noite. Imaginei meu amigo andando pelas ruas, com uma sacola de papel pardo na mão para esconder a garrafa de conhaque barato. Pensei que ele pudesse entrar em autodestruição quando descobrisse que tudo o que ele queria era tudo que ele não deveria: mudar-se para Nova Veneza em busca de sossego. Tive que abrir o jogo. Bater a real. Explicar a ele os perrengues que ninguém enxerga na pequena cidade italiana no interior de Goiás.
O que vivemos diariamente, inevitavelmente, quotidianamente e incontrolavelmente é cansativo para uma pessoa normal que não esteja habituada a tomar ansiolíticos e remédios para dormir. Sossego em Nova Veneza é artigo de luxo e só o conhece quem mora no subúrbio, nos condomínios mais afastados da cidade. Para apresentar ao Reginaldo o que é um dia na cidade, resolvi anotar tudo o que acontece só na rua de casa, num sábado. Apenas um dia como outros.
6h - badalar dos sinos da igreja católica
6h05 - revoar de maritacas que se estende até por volta das 11h
7h54 - desfile do carro de som do milho
8h12 - desfile do carro de som de loja de material de construção de Nerópolis
8h13 - desfile do carro de som da fábrica de doce de Nerópolis
8h14 até 8h42 - dois tratores com alarme de ré fazem a coleta de entulho
8h57 - desfile do carro de som do ovo
8h58 até 9h07 - cachorro da vizinha late como se estivesse disposto a não parar mais
9h08 - desfile do carro de som do ovo, de novo
9h35 - desfile do carro de som do alho (sim, tem!)
9h41 - desfile do carro de som da loja de colchão de Inhumas
10h15 - desfile do carro de som do supermercado atacarejo dominante
12h - badalar dos sinos da igreja católica, de novo
14h46 - desfile do carro de som do supermercado atacarejo dominante, de novo
15h01 - motociata de veículos com escapamentos adulterados
15h26 - desfile do Corolla branco com estilo de música desconhecido, mas batidão
15h42 - desfile da caminhonete travestida de árvore de Natal, com estilo de música desconhecido, mas tinha sanfona
15h50 - desfile de uma moto com escapamento adulterado
15h53 - início da algazarra vespertina das maritacas na mangueira
15h57 - Uno mile preto, rebaixado, também travestido, só que de boate, desfila com arrocha para tremer até aroeira fincada no concreto
17h15 - desfile do carro de som do supermercado atacarejo dominante, mais uma vez
17h21 - desfile do carro de som do supermercado recém-chegado à cidade
17h24 - desfile do carro de som do supermercado recém-chegado à cidade, de novo
18h - badalar dos sinos da igreja católica, mais uma vez
18h28 - desfile de motos com escapamentos adulterados
18h43 - revoada de maritacas com algazarra
19h01 - um HB20 branco, se achando carro-alegórico, desfila com pancadão
19h30 - começa o culto na igreja Assembleia de Deus
19h50 - início da apresentação da banda no culto da igreja Assembleia de Deus
20h20 - início do “show de calouros” no culto da igreja Assembleia de Deus (todos cantam sem afinação)
20h47 - desfile de outra caminhonete embalada no sertanejo
20h50 - desfile de outra moto com escapamento adulterado
20h51 - desfile de duas motos, na sequência, com escapamento adulterado
21h - segue a banda no culto da igreja Assembleia de Deus
21h03 - SUV preta com vidros abertos, desfila sob trilha sonora sertaneja
21h03 até… - cachorro da vizinha recomeça a latir
21h11 - outro carro desfila com sertanejo tremendo
21h12 - evangélicos começam a usar línguas diferentes, porém conhecidas nas celebrações, durante o culto da igreja Assembleia de Deus
21h14 - uma BMW contraria o bom gosto e faz tremer tudo com o grave do funk
21h16 - recomeça o “show de calouros” no culto da igreja Assembleia de Deus, agora com acompanhamento de banda completa e participação das crianças
21h30 - o bar do quarteirão ao lado aquece as caixas de som
22h23 - o pancadão treme os vidros das janelas. É mais um carro, também barulhento, sem conseguir se fazer entender a música
22h23 - todos os cachorros do quarteirão começam a latir…
22h42 - Amado Batista faz show nas ruas
22h45 - o bar aumenta o volume das caixas de som e aposta tudo no sertanejo
22h47 - na esquina de cima duas motos com escapamentos adulterados disputam qual delas é mais ignorante
22h47 - os cachorros continuam latindo. Todos da cidade
22h48 - uma grande caminhonete, como um “trio elétrico”, desfila tocando tecnobrega pelas ruas do centro
22h52 - um trio elétrico tocando tecnobrega ainda desfila pelas ruas do centro, hora longe, hora dentro do quarto onde se tenta dormir
22h54 - o bar do quarteirão de baixo resolve concorrer e aumenta o volume das potentes caixas de som que tocam sertanejo universitário. A cidade inteira é “contemplada”
23h04 - os cachorros continuam latindo…
23h39 - carros circulam freneticamente com seus sons explodindo quaisquer tímpanos que estiverem a menos de 10 metros de distância
23h42 - turma embriagada desce a rua cantando alguma coisa parecida com… sei lá!
Às 23h56, finda-se a garrafa de vinho, o que me permite relaxar para dormir, mas não sem antes encaixar, cuidadosamente, o tampão de silicone em cada um dos ouvidos para tentar descansar até que o galo cante e o sino da igreja volte a tocar. Para que não paire qualquer dúvida, os fatos e os horários marcados aconteceram, realmente. E foi só um sábado. Será que a intenção de se mudar para a pacata Nova Veneza permanecerá?
Rimene Amaral é jornalista, radialista e fotógrafo.
(FOTO: REPRODUÇÃO)
