Na noite do último dia 30 de setembro, nos últimos minutos do prazo já estendido anteriormente, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a União protocolaram novo pedido de prorrogação de 180 dias no Superior Tribunal de Justiça (STJ). O objetivo é ganhar mais tempo para regulamentar o plantio de cânhamo industrial e de cannabis medicinal, conforme determinado no Incidente de Assunção de Competência (IAC 16).
O histórico revela um padrão de adiamentos que contrasta com a urgência social da matéria. Em novembro de 2024, a Primeira Seção do STJ reconheceu a possibilidade de autorização sanitária para o cultivo, com finalidade exclusivamente medicinal e farmacêutica, e fixou prazo inicial de seis meses para a edição das normas. Esse prazo foi prorrogado, e a expectativa era de que setembro de 2025 representasse um ponto de virada. Não foi o que ocorreu.
O argumento apresentado pelo Executivo e pela Anvisa apoia-se na complexidade técnica, na necessidade de participação social e em mudanças internas na gestão da Agência. O cronograma agora promete abertura de consulta pública até o fim de outubro, sistematização das contribuições até janeiro e edição da norma até março de 2026.
Ainda que se reconheça a relevância de uma regulação participativa e tecnicamente sólida, a realidade é que cada adiamento amplia a insegurança jurídica e agrava a desigualdade no acesso a tratamentos. Pacientes continuam reféns de decisões judiciais individuais, associações sobrevivem em um limbo legal e famílias seguem arcando com altos custos de importação de produtos que poderiam ser produzidos localmente sob controle sanitário rigoroso.
Em agosto de 2025, a Agência anunciou que levaria à votação uma proposta de alteração da Portaria SVS/MS nº 344/1998 para retirar a cannabis sativa L. com baixo teor de THC da Lista E de plantas proscritas, medida que alinharia o regramento nacional ao cenário científico atual. No entanto, a minuta foi retirada da pauta da Dicol na reunião de 13 de agosto de 2025, adiando novamente a decisão. Esse histórico de adiamentos revela um padrão de hesitação regulatória que prolonga a vigência de normas desatualizadas e posterga a criação de um ambiente jurídico mais adequado para pacientes, prescritores e empresas.
O marco regulatório de cannabis, RDC 327/19 também reclama revisão pela Anvisa. A Consulta Pública nº 1.316/2025, que trata da atualização da norma, encerrou-se em junho e ainda segue sem conclusão: a Anvisa consolida contribuições e não pautou a matéria para deliberação da Diretoria Colegiada. É preciso lembrar que a própria norma previa sua revisão em até três anos — prazo que se esgotou em 2022. Ou seja, estamos com pelo menos três anos de atraso. O setor de farmácias de manipulação segue há seis anos proibido de atuar com cannabis, tema que responde por forte judicialização.
Esse compasso de espera expõe pacientes, médicos e empresas a um vácuo regulatório que compromete previsibilidade, segurança jurídica e até o acesso a terapias. A morosidade da Agência contrasta com a velocidade de expansão do mercado e com a urgência dos que dependem de produtos à base de cannabis para tratamento.
A demora não atinge apenas quem precisa da cannabis medicinal como recurso terapêutico, mas também impede o país de estruturar uma cadeia produtiva regulada, transparente e segura. O Brasil perde tempo enquanto outras nações avançam em políticas públicas que conciliam ciência, regulação e desenvolvimento econômico.
Ao insistirem em mais uma prorrogação, a União e a Anvisa transmitem a mensagem de que o direito à saúde pode esperar, quando o tribunal já foi claro em sua decisão. O atraso prolonga um cenário de incerteza e posterga a construção de uma política pública consistente. A postergação administrativa, neste caso, não é apenas burocrática: ela tem consequências concretas sobre vidas e direitos fundamentais.
*Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos