Em seu livro póstumo, recém-lançado pela Editora Planeta, o psicanalista Contardo Calligaris relata uma história ao mesmo tempo singela e reveladora sobre seu pai. O velho médico sempre estivera muito mais próximo de um liberal democrata do que de um socialista ou de um comunista. Por isso, ainda jovem e politizado, Contardo perguntara-lhe certa vez por que apoiara a resistência italiana durante a Segunda Guerra, a um alto risco pessoal, se não tinha propriamente uma ideologia. Depois de refletir, seu pai lhe respondera que o fizera "porque os fascistas eram vulgares".
À época, Contardo se chocou com a resposta. Não compreendia como um julgamento estético poderia não só anteceder, mas encontrar-se na origem de uma avaliação moral do mundo. O fascismo, para seu pai, não era desprezível por ser imoral. Antes disso, ele era imoral por ser grotesco.
Essa ideia da apreciação estética do mundo como base para compreendê-lo em termos morais, e como verdadeira fonte de sentido para a vida, veio ao encontro de meus pensamentos e iluminou algo sobre meu próprio pai e sua paixão pelos povos indígenas brasileiros.
Washington Novaes, falecido em 2020, dedicou boa parte da sua tinta de jornalista a exaltar a riqueza das culturas indígenas e a defendê-las. Como documentarista, fez três minuciosas séries sobre as comunidades do Xingu: "Xingu, a Terra Mágica", em 1984, "Kuarup, Adeus ao Chefe Malakwyauá", em 1987, e "Xingu, A Terra Ameaçada", em 2006.
Justamente por essa longa história de relação, no ano passado, o povo Kuikuro o incluiu entre os homenageados de seu Kuarup, o ritual de despedida dos mortos do alto Xingu, uma honraria raras vezes concedida a brancos.
Fui para a Aldeia Ipatse com família e equipe de filmagem e documentamos esse momento especial. Agora, venho tentando achar um caminho para contar essa história e, para isso, tenho revisto os documentários do meu pai e pensado sobre o que ele fala.
Há neles uma mistura de olhar jornalístico e poético, que, à primeira vista, parece meio desconjuntada e que, por vezes, me incomoda.
Meu pai, por mais que fosse um sujeito cheio de utopias e altos ideais, à semelhança do pai de Contardo, nunca foi um ideólogo. Ele nunca teve partido político e nutria, na verdade, certo desprezo por aquilo que qualquer ideologia, à esquerda ou à direita, significa em termos de cerceamento à liberdade de pensamento. Talvez por isso o anarquismo tenha sido a única doutrina que fazia seu olho brilhar.
Ainda assim, seus principais argumentos para explicar o fascínio e a insistência em torno dos índios eram quase sempre de ordem política. Ancorado no antropólogo francês Pierre Clastres, falava sempre da ideia de "sociedades contra o estado" - estruturadas, no mais profundo do seu ser, para impedirem a desigualdade oriunda da delegação de poder e do surgimento do estado; enxergava-as também como sociedades da plenitude do indivíduo, construídas e mantidas para garantirem a mais absoluta liberdade individual. "A vida do índio é o luxo de nascer e morrer sem nunca receber uma ordem", costumava dizer.
Assistindo a seus documentários, entretanto, mesmo que esses argumentos de ordem política estejam lá, eles não parecem compor a essência do que é dito. Não são o principal.
Foi então que, durante uma pausa na edição, lendo essa história sobre o pai do Contardo, uma ficha caiu e percebi que sua frase, dita em direção contrária, poderia caber na boca do meu pai: "me apaixonei pelos índios por sua beleza, e não por sua política ou ética".
E isso, de alguma maneira, explica tudo: os planos quase sempre muito longos, que não parecem casar com a vontade jornalística, a câmera e a montagem a toda hora sublinhando mais a sensualidade e a beleza do que a serviço de demonstrar fatos.
Nos documentários de Washington, quando a gente entende que os pontos de partida e chegada são, de certa forma, a celebração dessa beleza e o gozo com ela, o que pode parecer um esforço documental meio desconjuntado, ganha outro sentido e brilho.
A vulgaridade dos fascistas mostrou ao pai do Contardo a extensão da decrepitude moral de Mussolini e Hitler e lhe ofereceu um sentido para a vida em meio à Grande Guerra: resistir. Em direção oposta, acho que o desbunde estético dos índios abalou meu pai, no mais fundo do seu ser, e levou ele a todas as conclusões posteriores sobre sua importância política.
Todo o seu esforço de uma vida como documentarista e jornalista talvez nada mais tenha sido do que seu desejo impossível de compartilhar conosco aquele mesmo instante original em que, na visão crua da beleza do índio, a vida, para ele, fez sentido.