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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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Sudestinos

| 17.06.25 - 07:59

 
“Sudestino” é o nome de um vídeo hilário de 2021 do Porta dos Fundos. Nele, Gregório Duvivier interpreta um paulistano que acaba de se mudar para o Recife e é recebido pelos novos colegas de trabalho. Em uma inversão de papéis, os pernambucanos o acolhem da mesma forma como, com frequência, nordestinos são recebidos em São Paulo ou no Rio: com um afeto que revela uma porção de ignorâncias e preconceitos. Não distinguem Sul de Sudeste, Minas de São Paulo ou Rio, definem o colega por um punhado de estereótipos e dizem não ter preconceito, mas arrematam com a crítica: o único problema dos sudestinos “é que não sabem votar”, pois “têm uma coisa com miliciano que eu nunca vi gostar tanto”.
 
É curioso como, apesar de reconhecerem esse preconceito, as elites intelectuais sudestinas continuam a repeti-lo — mesmo sabendo o quanto, hoje em dia, pega mal ser preconceituoso.
 
Fazendo justiça: o pensamento sudestino não é exclusividade de quem nasceu no Sudeste. Tem seus centros irradiadores na Zona Oeste de São Paulo e na Zona Sul do Rio, mas se espalha, via meios de comunicação e departamentos de Humanas das universidades, por todo o Brasil metropolitano — encontrando eco em qualquer lugar onde haja um boteco pé-sujo gentrificado por nossa turma.
 
Nós adoramos bares pequenos e precários, antes frequentados por trabalhadores. Aqui em Goiânia mesmo, há um bar de imigrantes africanos e também um baile dos venezuelanos a que adoramos ir. São ótimos para a gente se sentir sem preconceitos — sem falar no ar de imersão etnográfica. E causa excelente impressão quando, em um restaurante caro de chef, podemos comentar com ar vivido: “Mas vocês precisam conhecer o bar dos africanos na Anhanguera”.
 
O sudestinismo é, no fundo, a ideia de que existem apenas dois Brasis: um moderno e cosmopolita, e outro, caipira e atrasado. O primeiro é o país das zonas Sul e Oeste do Rio e de São Paulo; o segundo, basicamente, o resto — com alguma tolerância em relação a Belo Horizonte e à Região Sul. Centro-Oeste? Caipiras, agroatraso e sertanojo. Nordeste? Pobreza, praias e resquícios da escravidão açucareira. Norte? Calor, floresta, índios e desmatadores.
 
Estou obviamente sendo bastante irônico para dizer, em primeiro lugar, que esse preconceito do chamado Brasil moderno contra o dito Brasil atrasado não é privilégio de pessoas do Rio e de São Paulo. Ele é constitutivo da visão da nossa bolha progressista. Em segundo lugar, porque, embora permeie toda a elite cultural, esse preconceito está mais arraigado justamente nessas elites do Sudeste.
 
Já falei repetidas vezes neste espaço sobre o preconceito contra a música sertaneja como uma das manifestações mais nocivas e chocantes dessa cisão entre os dois Brasis. O problema não está em não gostar de música sertaneja, mas na operação que leva a tomá-la como representação de um Brasil que precisa ser superado. Para justificar o preconceito, esse Brasil é então reduzido à exploração do trabalhador rural e à destruição ambiental.
 
Esse Brasil das fronteiras de fato existe — é a encarnação de sua face mais cruel: violenta, gananciosa e profundamente desigual. Mas a música sertaneja não é a trilha sonora apenas do pecuarista em sua caminhonete, chapéu texano à cabeça e 38 na cintura. Ela é ouvida e apreciada pela ampla maioria dos brasileiros: no sudoeste goiano, nos rincões da Amazônia, nos grotões do Nordeste, nas cidades-satélite de Brasília, na periferia de São Paulo e nas favelas penduradas nos morros da Zona Sul do Rio. É ouvida por indígenas no Xingu e no Rio Negro, por quilombolas na Chapada dos Veadeiros, por caiçaras na Mata Atlântica paulista. A maioria dos brasileiros se reconhece na música sertaneja. O mínimo esperado de quem se julga despido de preconceitos, portanto, seria um pouco de cautela — e, quem sabe, curiosidade. Não é mais possível entender o Brasil sem entender a música sertaneja.
 
Mas o sudestinismo não se manifesta apenas em relação ao sertanejo. No campo cultural, é comum rotular como “regional” quase toda produção que não venha do Rio ou de São Paulo — ou que não se enquadre em gêneros previamente sancionados por suas elites. Assim, por exemplo, não faz muito tempo, um veículo de comunicação chamou de “filme regional” uma produção baiana exibida com sucesso em horário nobre na TV Globo. Ora, ou todo filme é regional, ou nenhum é. Um filme feito em São Paulo não é da Região Sudeste e, portanto, também regional? Por que o mesmo veículo não se refere a esse tipo de produção com o mesmo termo? E, se a audiência da Globo é medida em termos nacionais, o que descaracteriza o filme baiano como “nacional” e o rebaixa a “regional”?
 
Não deixo de me impressionar com o quanto tantas pessoas com elevada autoimagem progressista seguem à risca o manual do sudestinismo. O mais irônico é que esse pensamento carrega uma visão de Brasil moldada por outras elites — da Europa e dos Estados Unidos. Não se concebe tampouco uma ideia de Brasil a partir de nossas singularidades. Por mais que critique a modernidade e o capitalismo, o sudestino continua acreditando que o ápice da humanidade reside no consumo de novas tecnologias, nos modismos do design e da cultura de massas, e numa postura afetada de desprezo por quem ainda não conhece a última casa do Facundo Guerra. Elx pode até vestir sua camiseta com o slogan “O Brasil é indígena”, mas passa longe de compreender as implicações profundas do que é ser indígena.
 
Certa vez, o ex-ministro Blairo Maggi perguntou a meu falecido pai se, já que os elogiava tanto, achava que todos deveríamos viver como indígenas. Ao que meu pai respondeu: “Nós não teríamos competência para isso.”
 

Comentários

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  • 17.06.2025 10:26 Rodrigo

    Boa!

  • 17.06.2025 09:36 px silveira

    Pedro, eu não te escrevo em resposta a seu artigo simplesmente porque gostaria de saber o endereço correto do bar dos africanos na Anhanguera (onde é mesmo??). Entendo muito do que você falou por ter percorrido de mochila o nosso país e, no extremo, por ter sobrevivido nos interiores da África à época acompanhado de uma namorada francesa loira. O sudestinismo que você retrata muito bem na verdade é uma camisa que se troca conforme a região, fruto do desconhecimento da outra, que é invariavelmente espelhada pelo avesso. Porém, mais insidiosa é categorização defensiva do que chamam de regional por oposição ao Brasil que “dá certo” na linha do litoral sul. Você retrata muito bem. “Aqui somos diferentes -e em tudo melhores”, pensam enquanto tentam virar as costas para a “cultura regional” que assim rotulam, mesmo quando ela consegue se impor demograficamente. Tenho pontuado nas artes visuais o caso do frei Confaloni, arte que se tornou marco zero da arte moderna no Planalto Central e que o Brasil desconhece porque não viveu em São Paulo e no Rio de Janeiro. O que ele vivenciou, supostamente devido ao isolamento geográfico e à precariedade dos meios de comunicação de então, hoje se repete de forma renovada e sob a capa de uma narrativa contemporânea (que só eles têm, pois não são regionais!). Na verdade, frei Confaloni se ombreia aos geniais italianos que vieram para o Brasil. Não deve nada a Victor Brecheret, Eliseu Visconti, Maria Bonomi, Alfredo Volpi, Fulvio Pennacchi, Waldemar Cordeiro, entre outros que, nascidos na Itália, adotaram nosso país e aqui, juntamente com Cândido Portinari (filho de imigrantes italianos), se tornaram fundamentais para a afirmação e desenvolvimento das nossas artes visuais. Mas Confaloni permanece “regional”, como se a arte não fosse universal, e museus lhe fecham a porta impedindo assim que o “centro” lhe possa conhecer, como constatado por mim recentemente. Na luta!

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Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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