A vida em sociedade pede que nos rotulemos. Isso não é uma queixa, apenas uma constatação. Rótulos são importantes para darmos um mínimo de ordem ao mundo e nos entendermos em sociedade. Mas é natural que tenhamos dificuldade com eles — ou, ao menos, com alguns deles —, porque toda pessoa é sempre muito maior do que aquilo que qualquer rótulo comporta.
Às vezes também nos sentimos menores, como se não estivéssemos à altura das etiquetas que nos impõem. É o que me ocorre quando dizem que sou diretor de cinema, por exemplo. Fico constrangido. Diretor de cinema é Steven Spielberg, Clint Eastwood, Federico Fellini. Eu sou só um farsante tentando me passar por isso — e nem falemos aqui da pretensiosa palavra cineasta.
O diabo, no meu caso, é que sou várias coisas e talvez nenhuma delas. Geógrafo, cientista ambiental (“cientista” também me leva pro mesmo constrangimento de “diretor de cinema” — afinal, cientista é Charles Darwin, Albert Einstein, Edward Wilson, não eu), documentarista, roteirista, escritor (essa é complicada também).
E agora, sobretudo desde que passei a escrever esta coluna semanal, tem muita gente (umas três pessoas, como diz o
Muryllo Garcia) que me identifica como jornalista — mas esse rótulo me provoca uma reação diferente.
Não sou jornalista. Talvez devesse ter sido, mas não fui. Graduei-me em Geografia, fiz pós-graduação na área ambiental e, em paralelo, fui trabalhar com cinema e televisão. Jornalismo mesmo, nunca fiz. Todavia, quando me apresentam como tal, sinto um misto de vergonha — aquela mesma sensação de estar cometendo uma fraude — e orgulho.
Orgulho porque reputo essa profissão, volta e meia tão achincalhada, como a mais importante de todas. E também porque, por acaso, sou filho de dois jornalistas e cresci em meio ao seu círculo de amizades e profissão, que era predominantemente de jornalistas.
Volto sempre, nos meus textos, à rica metáfora do pensador cristão britânico G. K. Chesterton. Ele conta a história do navegador que parte da Grã-Bretanha, se perde no mar e retorna, sem perceber, à própria Grã-Bretanha, acreditando ter chegado a uma ilha selvagem. Para Chesterton, esse é o equilíbrio paradoxal — mas necessário — a ser buscado para uma boa vida: a capacidade de se sentir ao mesmo tempo em casa e em uma grande aventura.
Quando retorno, em minha memória, aos almoços de domingo, às visitas às redações do Globo Repórter ou do Diário da Manhã, às gravações em que acompanhei meu pai, a encontros com figuras enormes como Marco Antônio Coelho, Zuenir Ventura, Aloysio Biondi, Newton Carlos, Rubem Braga, Hélio Pellegrino, Fernando Sabino, a sensação é exatamente essa: o mundo era imenso, cheio de coisas desafiadoras e difíceis, mas eu estava em casa.
Todos eles tinham suas convicções políticas, suas alianças e preferências partidárias, mas era muito evidente como carregavam um compromisso maior com outra coisa. Não com a “verdade” — palavra problemática —, mas com um recuo crítico, uma recusa precisamente em tomar versões dos fatos como definitivas ou absolutas. Uma precaução, talvez, contra a própria falibilidade pessoal para arbitrar juízos, fundada na compreensão de que a sociedade democrática nasce e se sustenta do debate ruidoso, da controvérsia, do embate muitas vezes duro de visões e opiniões.
Jornalismo que merece esse nome não serve para apaziguar, encerrar o debate ou arbitrar conflitos. Jornalismo serve para complicar, tornar mais complexo, evitar as soluções fáceis e os atalhos ilusórios que são a antítese da democracia — ou cortina de fumaça para arbítrios e interesses escusos.
Ser jornalista é, ao mesmo tempo, ter profunda admiração e profundo nojo pela política — e seguir em frente com a cruz literal desse paradoxo.
Por isso tudo, agradeço a todos aqueles, em especial a meus amigos jornalistas, que me adotam, de alguma forma, como membro dessa classe tão especial. Fico um pouco constrangido, mas profundamente orgulhoso.