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A casa modernista de Bariani Ortencio e seu marco na identidade de Goiânia

Construção icônica está localizada na Rua 82 | 09.02.24 - 10:29
A casa modernista de Bariani Ortencio e seu marco na identidade de Goiânia Foto: Rodrigo Obeid/A Redação
Carolina Pessoni
 
Goiânia - Na Rua 82, no Centro de Goiânia, uma construção modernista se destaca. Entre imóveis comerciais e estacionamentos, as finas grades que protegem a casa revelam uma arquitetura icônica, tanto pelo seu traço, quanto pelo seu morador mais nobre.
 
Por 54 anos, ali foi o endereço do escritor, folclorista e compositor Bariani Ortencio. Além de ser uma construção modernista muito preservada, a edificação se tornou referência na cidade por ser um ponto de encontro da cultura goiana.
 
Situada em frente à Praça Cívica, marco do início de Goiânia, a casa começou a ser construída no final dos anos 1950. O projeto do arquiteto goiano Eurico Godói terminou de ser erguido por volta de 1964 e já se destacava em meio ao art déco que predominava na jovem capital naquela época.
 

Traços retos, diversidade de revestimentos e escada externa caracterizam a arquitetura moderna da casa (Foto: Rodrigo Obeid/A Redação)
 
De acordo com uma pesquisa da Universidade Federal de Goiás (UFG), coordenada pela professora e arquiteta Eline Maria Moura Pereira Caixeta, o movimento de arquitetura modernista em Goiânia buscava romper com os padrões dominantes, inovando na organização dos espaços e na utilização de novos materiais e técnicas. A nova linguagem tinha o objetivo de desvincular-se do passado, trazendo modernidade para a cidade.
 
O projeto de Eurico Godói foi feito originalmente para Eurípedes Ferreira, primeiro morador do imóvel, e adotou a horizontalidade que era associada à inovação, como a escada externa que dá acesso ao piso superior. O formato em "L" da construção é voltado para o pátio interno, onde foram instalados um jardim e uma piscina numa grande área de convivência.
 
Além disso, a fachada se destaca pela diversidade de materiais, como diferentes revestimentos cerâmicos e utilização dos cobogós (elementos modulares vazados), em conjunto às amplas janelas com vidros holandeses. A laje mantém o traçado reto e sustenta as telhas de amianto, quase imperceptíveis ao primeiro olhar.

No pavimento superior da casa, uma grande sala de estar, sala de jantar e uma cozinha bastante espaçosa. Quatro quartos estão dispostos em frente a um corredor que faz vista para a área comum da casa. O último deles era o de Bariani. O local se mantém intacto após o falecimento do escritor, em dezembro de 2023.
 

Uma das últimas fotos do escritor, na sala de estar onde gostava de sentar perto da janela para acompanhar o movimento da rua (Foto: Reprodução/Wesley Costa)
 
O primeiro proprietário da casa, Eurípedes Ferreira, era dono de uma imobiliária em Goiânia e sua esposa possuía uma confecção dentro da própria residência. Bariani se mudou com a família para o local em 1969, após uma paixão à primeira vista pelo imóvel.
 
Uma vida em uma casa
"A história da compra dessa casa é engraçada", lembra um dos filhos de Barini, Luiz Antônio. Sentado em uma cadeira de metal na área comum, ele conta que tinha ido com o pai a Brasília para buscar a irmã mais velha, que estava voltando de uma viagem para o exterior, e que, ao chegarem ao aeroporto da capital federal, descobriram que, na verdade, tinham desembarcado em São Paulo. "A filha do proprietário desta casa estava no aeroporto por alguma razão e, quando soube que a gente era de Goiânia, pediu uma carona até a casa dela. Quando chegamos em frente ao imóvel, meu pai ficou impressionado com a construção, e como éramos oito pessoas morando em uma casa pequena, na Rua 1, ele decidiu fazer uma oferta", rememora.
 

Quarto de Bariani Ortencio continua intacto, inclusive com a presença da gata Princesa, que espera todos os dias pelo escritor (Foto: Rodrigo Obeid/A Redação)
 
Luiz diz que ficou cerca de 40 minutos no carro, aguardando o pai, e que depois de tanto esperar, resolveu entrar na casa. "Quando entrei, meu pai já estava fechando o negócio. Como nessa casa grande moravam só três pessoas e na nossa, pequena, éramos seis irmãos e nossos pais, ele brincou com o proprietário que as famílias podiam trocar de moradia."
 
Na negociação, além de valores em dinheiro, foram incluídos lotes e salas comerciais para pagar o investimento. E quando faltavam apenas os trâmites finais da venda no cartório, uma reviravolta quase muda o rumo da história. "Estava tudo certo, mas de repente, o dono procurou meu pai e quis desfazer o negócio porque disse que tinha ganhado na loteria", lembra outro filho de Bariani, José Carlos. Ele revela que Bariani, como bom comerciante, disse que venderia novamente a casa para o antigo proprietário, porém, pelo dobro do valor.
 
"Aí ele não quis mais", diz José Carlos entre risadas. "Depois ficamos sabendo que ele jogava muito carteado aqui e também era dono de boutique, que era frequentada só por gente famosa e da alta sociedade de Goiânia", recorda.
 

Filhos de Bariani, Luiz Antônio, José Carlos, Nancy e o genro Beto Selva (Foto: Rodrigo Obeid/A Redação)
 
Desde então, a família morou no local e Bariani não saiu mais. "Nos mudamos para cá em maio de 1969. A gente assistiu a Copa do Mundo de 1970 aqui, colocamos a televisão ali, do lado daquela porta", diz Luiz, apontando na direção da entrada do museu particular do pai, em frente à ampla área comum.
 
Entre as lembranças da infância e juventude, Luiz e José Carlos se recordam com carinho do campo de futebol que havia do lado do jardim da casa. "Ali onde está a cozinha caipira era o nosso campinho. Muita gente conhecida já jogou com a gente, como o cantor Marcelo Barra e o Paulo Garcia, ex-prefeito de Goiânia", afirma Carlinhos, como é chamado pelos irmãos.
 
Nancy, também filha de Bariani, diz que o pai sempre foi consciente da importância da arquitetura da casa e que, por isso, fez poucas modificações. "Ele tinha esse entendimento, por isso teve a dedicação de manter tudo muito bem cuidado. A única grande modificação foi a construção da cozinha caipira, com o fogão à lenha. Meu pai fez de tudo para preservar essa edificação histórica", assevera.
 
Abrigo de cultura e história
“A gente já ouviu dizer muitas vezes que nada acontecia na cultura de Goiás se não começasse aqui”, conta Nancy, que hoje mora no imóvel. Mais do que paredes, tijolos e portas, a casa de Bariani Ortencio era um verdadeiro ponto de cultura e folclore goianos no centro da Capital.
 
 

Reunião da Secretaria de Cultura do Estado de Goiás realizada na casa do escritor, em 2012 (Foto: Reprodução/Secult)

“Desde sempre víamos lançamentos de livros, discos, reuniões do setor cultural goiano aqui em casa. Políticos, secretários de governo, principalmente da área de cultura e educação, tanto do Estado quanto de Goiânia, não saíam daqui”, lembra José Carlos.
 
No pavimento térreo da casa, em frente à área aberta, está localizada a Oficina Literária. Este cômodo abriga a maior biblioteca de obras goianas do Estado. “Tudo o que já foi publicado por escritores de Goiás tem aqui”, orgulha-se Luiz Antônio.
 
Os filhos estimam que cerca de 5 mil exemplares de livros façam parte do acervo, que conta ainda com discos, CDs e coleções de jornais impressos, incluindo exemplares do primeiro periódico do Estado, a Matutina Meiapontense. “Meu pai era um entusiasta da cultura. Esse acervo aqui é muito valioso. O espaço pode até ser pequeno, mas o valor que tem tudo isso aqui é enorme”, ressalta José Carlos.
 

Oficina Literária de Bariani Ortencio é considerada a maior biblioteca de obras goianas no Estado (Foto: Rodrigo Obeid/A Redação)
 
A biblioteca era também o escritório de Bariani. No local, as mesas de trabalho ainda estão preservadas, com anotações, documentos, exemplares publicados e até mesmo as provas impressas enviadas pela editora dos próximos livros que o escritor já programava lançar.
 
“Nessa mesa foram tomadas muitas decisões importantes. Um exemplo foi quando queriam vender o campo do Atlético Goianiense, em Campinas, para construir um shopping no lugar. Meu pai, que era acionista do clube, reuniu outros atleticanos, como, o próprio prefeito Iris Rezende, para tomarem alguma atitude. A reunião foi feita aqui, quando o time ainda jogava a série B do Campeonato Goiano. Nesse encontro Atlético foi salvo e hoje está na Série A do Campeonato Brasileiro”, conta, com orgulho, José Carlos.
 
Ao lado da Oficina Literária está o Acervo Bariani Ortencio, um museu pessoal do escritor paulista de nascimento e goiano de coração. Entre os itens, diversas fotos pessoais e históricas, que muitas vezes são as duas coisas em um só registro. 
 
Gramofones, aparelhos de som, telefone, brinquedos da infância, violões e máquinas de costura antigas, entre outros objetos, estão espalhados pelo lugar. Entre as raridades, um pote de barro chama a atenção. “Você reconhece? É de Antônio Poteiro. Meu pai foi quem descobriu o artista e deu a ele esse nome porque ele fazia potes de barro”, conta Luiz.
 
 

Objetos de barro e, à direita, um pote feito por Antonio Poteiro, artista plástico descoberto e batizado com esse nome por Bariani Ortencio (Foto: Rodrigo Obeid/A Redação)
 
Nas paredes, além de retratos com autoridades e personalidades - nacionais e internacionais -, diversos diplomas e certificados de homenagens cobrem praticamente toda a pintura do local, sendo o principal o título de Doutor Honoris Causa concedido pela UFG em 2012. Nos armários, fitas VHS, K7, discos de 78 rotações, comendas, certificados e até uma coleção de notas e moedas antigas estão catalogados e organizados pessoalmente pelo escritor.
 
“Este é um imóvel icônico, não só pelo local e pela construção, mas pelo habitante que viveu aqui tantos anos e movimentou a casa”, afirma Beto Selva, genro e representante oficial do escritor e folclorista. O local é também o endereço oficial do Instituto Cultural e Educacional Bariani Ortencio.
 
Para manter o legado histórico, cultural e pessoal de Bariani, a família busca parcerias com instituições. “Nosso ideal é manter a casa e o Instituto funcionando nela. Por isso, procuramos uma entidade que preserve essa história, tanto que estamos adaptando e refazendo a diretoria para reativar o Instituto e para a realização de palestras, cursos, workshops”, explica Beto Selva.
 
O objetivo é reiterado por Nancy. “Temos a preocupação de não alugar ou vender para uma pessoa particular, que pode se desfazer de tudo. Queremos alguém que vá preservar e manter esse patrimônio da cultura goiana.”
 

Objetos antigos, diplomas, comendas e coleções estão guardados e catalogados pessoalmente pelo escritor e folclorista (Foto: Rodrigo Obeid/A Redação)
 
Para Selva, a preservação do imóvel como um instituto cultural é importante também para a região central de Goiânia. “Aqui perto temos a antiga casa de Pedro Ludovico, que se transformou em museu, o Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, a Galeria Cerrado, os museus da Praça Cívica... São todos muito importantes e que têm transformado o Centro em um polo cultural.”
 
Para os filhos, a casa tem um significado ainda mais especial. “Ela sempre representou muito, porque é um local que recebe artistas de todos os meios, é um verdadeiro ponto de cultura. Meu pai disse que só sairia daqui quando morresse, e assim foi feito. A família é muito unida e quer preservar essa herança”, assegura Nancy.
 
Bariani: vida e obra
Waldomiro Bariani Ortencio é paulista da cidade de Igarapava, mas se mudou para a capital goiana com a família em 1938, quando tinha 15 anos. Estudou no Lyceu de Goiânia e trabalhou como alfaiate, ao lado das duas irmãs.
 

Bariani (à direita) ao lado das irmãs Lucília e Chica (Foto: Rodrigo Obeid/A Redação)
 
Na década de 1940 foi goleiro do Atlético Clube Goianiense, mas também foi professor, industrial, minerador e marceneiro. O famoso peixe na telha, patrimônio gastronômico de Goiás, foi criado por Bariani em 1975, em parceria com Aldair da Silveira Aires. Antes, em 1945, criou o Bazar Paulistinha, em Campinas, casa de discos musicais que funcionou até 2019.
 
No início a loja vendia de tudo, desde material esportivo, de pesca e aviamentos. "Como ele ia muito a São Paulo para comprar os produtos, trazia de lá também os discos. Dez anos depois da abertura, o Bazar passou a trabalhar só com música", conta Luiz Antônio, que administrou o empreendimento nos seus últimos 40 anos de existência.
 

Bazar Paulistinha começou vendendo materiais esportivo, de pesca, aviamentos e discos musicais em Campinas (Foto: Arquivo pessoal)
 
O Bazar Paulistinha foi, por muitos anos, o ponto de referência para músicos e artistas que chegavam na capital. "Meu pai ajudou a lançar Di Paulo e Paulino e Amado Batista, que inclusive fechou o contrato com a gravadora dentro da loja", lembra Luiz.
 
Em 1948, Bariani matriculou-se na Faculdade de Odontologia, mas não concluiu o curso, já que resolveu casar-se com Ana Silva de Moraes, conhecida como Leuza. Com ela, teve seis filhos: Maria Lucy, Suely, Nancy, Luiz Antônio, José Carlos e Cláudio.
 

Porta-retrato estampa foto de Leuza e Bariani na sala de estar da casa (Foto: Rodrigo Obeid/A Redação)
 
Em 1956 ingressou na carreira literária com a publicação do livro O que foi pelo Sertão, que lhe rendeu o prêmio Americano do Brasil pela Academia Goiana de Letras. A partir daí foram 55 livros publicados, entre eles A Cozinha Goiana (1967), Dicionário do Brasil Central (1983) e Medicina Popular do Centro-Oeste (1997), que juntos formam a tríade “comer, falar e curar”.
 
Entre as obras do escritor, ainda há quatro livros inéditos que serão editados. O primeiro deles é uma reedição de Medicina Popular do Centro-Oeste, com lançamento previsto para março deste ano.
 
Como compositor, é autor de inúmeras músicas gravadas por diversos intérpretes, como Irmãs Santos, Duo Paranaense, Trio da Vitória, Duo Estrela D'Alva e Duo Guarujá, entre outros. É dele também a autoria de "Brasília a Capital da Esperança", composta em parceria com Henrique Simonetti e Capitão Furtado, considerada Hino de Brasília.
 
Bariani foi também o primeiro produtor musical independente de Goiás. Foi ele quem descobriu e lançou o cantor Lindomar Castilho, de quem também foi autor de diversas músicas.
 

Os escritores Maximiano da Mata Teixeira, Bariani Ortencio, Bernardo Élis e Modesto Gomes da Silva num jantar organizado por Amália Hermano Teixeira em 1975 (Foto: Acervo do Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis Para os Povos do Cerrado - Icebe)
 
E por falar em música, Bariani Ortêncio é homenageado em duas canções que ficaram muito famosas. A primeira é um clássico do sertanejo, "Pagode em Brasília", que ganhou o país na voz da dupla Tião Carreiro e Pardinho.
 
"Nos versos 'No estado de Goiás meu pagode está mandando/O bazar do Waldomiro em Brasília é o soberano', o Waldomiro é meu pai e o bazar é o Bazar Paulistinha, que tinha uma unidade na capital federal, construída num lote doado por Bernardo Sayão", orgulha-se José Carlos.
 
A outra música que homenageia o escritor e suas obras é "Saudade de Goiás", composta por Goyá e gravada pela dupla Belmonte e Amaraí. A primeira estrofe entoa: "Goiás é saudade em tudo que falo/Às vezes me calo por essa razão/Mas o Waldomiro Bariani Ortencio/Rompeu o silêncio do meu coração/Porque em seu livro Sertão Sem Fim/Mandou para mim recordação."
 
Escritor, folclorista, compositor, professor, industrial, ativista da cultura, empresário, administrador, poeta, jogador de futebol e ainda um exímio entendedor de cachaça. Participou também da fundação de entidades culturais, como a Academia Goianiense de Letras e Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás. Tantas ocupações elevaram, não sem razão, a figura de Bariani na história goiana. 
 
"Era uma pessoa que tinha uma incrível capacidade de organizar seu tempo. Por isso que chegou aos 100 anos, para conseguir fazer tudo o que tinha vontade", exalta Beto Selva.
 

Bariani Recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela UFG em 2012 (Foto: Ascom UFG)
 
Nancy afirma que o pai dizia a todos que queria morrer com 126 anos. "O ditado dele era 'Eu não tenho medo da morte, tenho medo de não fazer tudo o que eu quero.' Ele fez muitas coisas, o que nos orgulha muito. É uma credencial ser filha do Bariani", orgulha-se.
 
"Não é porque era meu pai, mas ninguém fez mais pela cultura goiana do que ele. Ninguém conhecia Goiás como Bariani Ortencio. Ele viveu por isso e é nosso dever manter essa casa e a herança que ele deixou, era o desejo dele", assegura José Carlos. 
 
Bariani faleceu em 15 de dezembro de 2023, em Goiânia. Deixou um legado incalculável para a cultura goiana e para o Brasil. Como diz a mensagem no cartão da missa de sétimo dia do escritor: "Ensinou o que aprendeu ao longo de um século. Tocou corações, iluminou mentes e transformou vidas. Viveu como poucos, partiu como muitos, passou como único."

 

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