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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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O Cerrado como invenção

| 02.07.24 - 08:00
Mapa de biomas brasileiros (Fonte: IBGE)

Segundo a cartografia oficial, mantida e atualizada pelo IBGE, o Brasil é composto por seis grandes biomas: a Amazônia, a Caatinga, a Mata Atlântica, o Pampa, o Pantanal e o Cerrado. 
 
Cada um deles tem características que o definem, sobretudo a partir de seus tipos de vegetação - que, na verdade, são expressão de ecossistemas complexos, onde vida e processos físico-químicos formam um todo inseparável de partes mutuamente dependentes.
 
Toda cartografia, entretanto, privilegia certos elementos em detrimento de outros, evidencia determinados aspectos enquanto esconde alguns. "O mapa não é o território", diz a conhecida frase do filósofo polonês Alfred Korzybski, e portanto não deve ser lido ou usado com ingenuidade. "A Geografia, isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra", lembra-nos também o título de um clássico da Geografia, escrito pelo francês Yves Lacoste. Cada mapa responde a certas perguntas, tem uma história que levou à sua construção, e não é, portanto, neutro.
 
O Cerrado em disputa
O Cerrado e o Pantanal registraram este ano o maior número de focos de incêndio desde 1998, quando se iniciou a série histórica de registros sobre queimadas. O Cerrado foi o bioma onde, no ano de 2023, ocorreu 61% de todo o desmatamento registrado no Brasil, segundo o MapBiomas. A região chegou ao final do ano passado com cerca de metade de sua vegetação original removida. Ao mesmo tempo, enquanto os números de desmatamento vêm caindo na Amazônia, eles seguem crescendo no Cerrado.
 
Essa pressão sobre o bioma se explica pelo fato de abrigar parte cada vez maior da produção agropecuária brasileira, que não para de se expandir em um contexto global favorável à exportação de commodities nas últimas três décadas. Enquanto em 1970, o agronegócio respondia por apenas 14% do PIB brasileiro, hoje, essa participação já é de 25%, segundo a Confederação Nacional da Agricultura, a CNA. Um em cada três empregos no Brasil são gerados pelo setor; e, hoje, é também a agropecuária quem garante o superávit da balança comercial do país, cobrindo o déficit que permanece expressivo nos demais setores.
 
Entre a década de 1970 e os dias atuais, o Cerrado passou de 18% para mais de 40% de participação na produção agropecuária brasileira. Daqui, saem cerca de metade da produção de grãos, incluindo 60% de toda a soja, além de 40% da carne bovina.
 
Como se percebe, entre a urgência da conservação e a pujança do agronegócio, há verdadeiro choque de projetos que têm o Cerrado como palco. Todavia, para sairmos da paralisia inerente a um embate desse tipo, talvez seja preciso começar por desnaturalizar o próprio conceito de Cerrado. 
 
Não existe somente um Cerrado e nenhum deles foi uma simples criação de um deus ou do processo evolutivo do planeta ao longo de seus 5 bilhões de anos. O cerrado - qualquer um deles - é uma invenção política, social e científica. Ele é um elemento desde sempre controverso, quanto mais importante seja para nossa vida coletiva. 
 
Há um ramo da Sociologia da Ciência, conhecido como "Estudos da Ciência e Tecnologia", que não encara a produção do conhecimento como um processo apartado da sociedade, mas sim como um dos elementos que interagem, em pé de igualdade, com a política, para a construção do mundo social.  Pensadores como o italiano Tommaso Venturini, o francês Bruno Latour ou o dinamarquês Anders Cristian Munk, encaram o conhecimento e a verdade não como elementos que existam de forma independente dos humanos, nem tampouco como construção subjetiva. Eles são, na realidade, efeitos resultantes desse processo político e científico da organização dos seres humanos para sua vida em comum.
 
O cerrado, nesse sentido, não é um fato natural, e sim o resultado da mobilização e conexão de elementos não-humanos e humanos nos embates político-científicos que nos ajudam a construir a vida em sociedade.
 
Num momento histórico que parece decisivo, diante do papel que o Cerrado pode ter nas mudanças climáticas, no futuro da própria Amazônia e no projeto que queremos de país, parece importante um trabalho quase arqueológico, de escavação, sob os vários usos que, no jogo político, se fazem da palavra cerrado. Lançando luz e explorando a controvérsia em torno desse objeto multifacetado e contraditório podemos, quem sabe, ganhar uma visão renovada para nos reposicionarmos de forma mais eficaz e sairmos da paralisia que parece tomar conta do debate político sobre o meio ambiente.
 
O Cerrado como vegetação e como bioma
 
Paisagem de Cerrado na Chapada dos Veadeiros (Fonte: Shutterstock).
 
Em primeiro lugar, portanto, é preciso desnaturalizar o conceito de bioma. Se, hoje, tornou-se lugar comum falar do Cerrado dessa forma, é preciso dar alguns passos atrás na história do conhecimento e na forma como ela se articula ao debate político para lembrarmos que nem sempre foi assim. 
 
O primeiro mapa oficial dos biomas brasileiros, feito pelo IBGE, tem apenas 20 anos. Ele evidentemente representou a consolidação de uma forma de olhar para o Cerrado e para a conformação ecológica de nosso território que emergiu de pesquisas científicas nos anos anteriores em resposta a debates e a pressões de diferentes ordens. As influências que ajudaram a moldar essa cartografia incluem a constatação das pressões econômicas, mas também certa ideia do que deve ser a conservação da natureza, privilegiando, nesse caso, elementos não-humanos.
 
Nesse sentido, embora o conceito de bioma seja fundamental para nosso entendimento da realidade ambiental do país, e do Cerrado especificamente, ele está longe de ter uma aceitação pacífica, mesmo em setores do ambientalismo, justamente por essa exclusão do componente humano. Afinal, seres humanos não apenas habitam esse bioma há milênios, como, sugere hoje o próprio conhecimento científico, tiveram um papel fundamental em conformá-lo para que tenha hoje as características que conhecemos.
 
Se, para a Amazônia, trabalhos como o do arqueólogo Eduardo Góes Neves já vêm mostrando de maneira inequívoca que a floresta não é um dado da natureza, e sim um produto da interação de milênios entre populações indígenas e o meio, o mesmo deve, seguramente, ser verdade para o cerrado. Em porções da alta bacia do rio Xingu, no Mato Grosso, por exemplo, outros pesquisadores, como James Petersen e Michael Heckenberger, também já demonstraram o alto grau de ocupação pré-colonial do Cerrado e de interferência dessas populações em sua dinâmica ecológica.
 
Por isso, o Brasil é inclusive um dos países onde mais se destaca a força do chamado "socioambientalismo", que une pesquisadores, ativistas, indígenas e outras comunidades tradicionais em torno de uma ideia de conservação ancorada nos conhecimentos dessas comunidades - que são tão impactadas pelo desenvolvimento quanto a parte não-humana do Cerrado. Nessa linha, o conceito de bioma é utilizado com mais cautela, dando-se preferência frequentemente ao uso da noção de "território", que ajuda a incorporar o componente humano ao debate.
 
Se regredimos ainda mais no tempo, damo-nos conta de que, nos relatos dos primeiros viajantes que percorreram o interior do Brasil, praticamente não há menções ao cerrado.
 
Auguste de Saint-Hilaire, em retrato de Henrique Manzo
(Foto de José Rosael/Hélio Nobre/Museu Paulista da USP)
 
Nos escritos de Saint-Hilaire, o naturalista francês, por exemplo, que percorreu extensamente os cerrados de Minas Gerais, Goiás e Bahia, no século XIX, o termo não aparece nenhuma vez em suas detalhadas descrições da paisagem - e Saint-Hilaire, como se sabe, era bastante rigoroso com nomenclaturas e no respeito às expressões locais, usando, não raro, palavras e locuções em português como forma de registrar os nomes dados aos elementos da paisagem pelos próprios brasileiros. 
 
Tampouco Von Martius, o naturalista alemão, fala em "cerrado" ou "cerrados" naquela que é a primeira tentativa de classificar os grandes domínios brasileiros de vegetação, ainda em 1824, como mostra o trabalho do professor Jorge Luís Oliveira Costa, da Universidade Federal da Fronteira Sul, a UFFS, juntamente com colegas das universidades Federal e Estadual do Piauí.
 
A consolidação do uso do termo cerrado para descrever tanto tipos específicos de vegetação como, posteriormente, o bioma, é fruto de um processo gradual de debate científico e político. 
 
Em 1877, mostra o mesmo estudo mencionado acima, o naturalista baiano Joaquim Monteiro Caminhoá propôs uma nova espacialização, onde aparece então a "Região dos Campos" e, dentro dela, a subzona dos "Tabuleiros, cerrados ou carrascos, chapadas". No sistema do botânico Gonzaga Campos, proposto em 1926, os "Campos Cerrados" surgem então como um subtipo vegetacional dentro do tipo "Campos".
 
Mapa Fitogeográfico de Alberto José Sampaio

No sistema de Alberto José Sampaio, um dos mais importantes botânicos brasileiros, publicado em 1940, o cerrado sequer existe como domínio fitogeográfico. A porção do território hoje consagrada ao bioma aparece dividida entre a Flora Amazônica, na sua porção mais setentrional, a Zona dos Cocais, que se estende do leste do Mato Grosso ao litoral do Maranhão, a Zona dos Campos, que vai do noroeste do Mato Grosso ao centro-sul de Goiás, e a Zona das Caatingas, que encompassa o norte de Goiás, o oeste da Bahia e o norte de Minas.
 
É somente a partir do sistema proposto pelo geógrafo Aroldo de Azevedo, em 1950, que o Cerrado, no singular, se firma como um elemento definitivo do entendimento da paisagem brasileira, aparecendo como um dos subtipos das "Formações Arbustivas e Herbáceas".
 
O Cerrado como Fronteira e Celeiro
 

Colheita de soja (Foto: James Baltz/Unsplash).

No início da década de 1970, o Brasil era ainda um país importador de alimentos. Enquanto nos industrializávamos a passo acelerado, a ausência de políticas robustas para o campo estimulava o intenso êxodo rural que marcou nossa evolução demográfica e que levou a uma ameaça de escassez de gêneros alimentícios. 
 
Com isso, os investimentos em desenvolvimento de tecnologias e em grandes projetos de ocupação e desenvolvimento do território, durante a Ditadura Militar, mudaram a sorte do Cerrado. Seus solos ácidos e de baixa fertilidade passaram a render produtividade crescente com base em técnicas desenvolvidas inicialmente pela Embrapa e a progressiva criação de variedades adaptadas ao clima tropical - a soja, por exemplo, é originalmente uma planta de clima temperado que somente vultosos investimentos em ciência e tecnologia adequaram às características do Planalto Central brasileiro.
 
No rastro dessas tecnologias e dos atrativos criados por programas como o Prodecer (Programa Nipo-Brasileiro de Desenvolvimento dos Cerrados), veio a história que se conhece, de milhões de imigrantes, especialmente do sul brasileiro, instalando-se na região e promovendo o salto conhecido na produção agropecuária.
 
No imaginário dessa população, alternam-se visões conflitantes do cerrado, ora como natureza que provê, ora como mundo agreste e inóspito que precisa ser dominado pela mão humana para gerar riqueza e se tornar um lar. 
 
É ilustrativa, nesse sentido, a maneira como a música sertaneja concilia essas duas características opostas. A bela Terra Tombada, de Chitãozinho e Xororó, por exemplo, começa com a imagem de "sobras de queimadas e fumaça no espigão" e continua da seguinte maneira para ilustrar a relação entre o agricultor e a terra:
 
"Lavrador tombando terra, dá de longe a impressão
De losangos cor de sangue desenhados pelo chão.
Terra tombada é promessa de um futuro que se espelha
No quarto verde dos campos, a grande cama vermelha,
Onde o parto das sementes faz brotar de suas covas
O fruto da natureza cheirando a criança nova."
 
De forma curiosa e sintomática, por outro lado, quando o sertanejo exilado nos grandes centros urbanos - figura sempre presente nesse repertório -, sente saudade do campo, é a natureza que o inspira, como na maravilhosa Saudade da Minha Terra, um dos primeiros grandes sucessos da mesma dupla:
 
"Adeus paulistinha do meu coração,
Lá pro meu sertão, eu quero voltar.
Ver a madrugada, quando a passarada,
Fazendo alvorada, começa a cantar."
 
E segue, uma estrofe depois, celebrando a beleza do mundo natural:
 
"Que saudade imensa do campo e do mato,
Do manso regato que corta as campinas.
Aos domingos ia, passear de canoa,
Nas lindas lagoas de águas cristalinas".
 
Quase sempre, entretanto, para o sertanejo brasileiro, o uso do termo cerrado vem carregado de um sentido pejorativo, referindo-se a um tipo de vegetação ou paisagem natural sem qualquer valor positivo. Esse é um lugar onde somente pela força do trabalho é possível extrair algo de bom. Não é raro, ainda hoje, ouvir de imigrantes ou seus descendentes no interior de Goiás ou do Mato Grosso frases como: "Isso aqui era só o cerrado, não servia pra nada!"
 
Todavia, independentemente de como se julgue o cerrado do agronegócio, é forçoso reconhecer que foi esse cerrado que deu ao agro sua força atual. Organizados politicamente e com a extrema dependência econômica que o país tem dos dólares que a soja e o boi fazem entrar, os agricultores, a música sertaneja e seu cerrado esquizofrênico - morada e inimigo - são parte fundamental da paisagem política brasileira, a ponto de seu poder ter sido essencial para eleger um presidente.
 
 
O Cerrado como sertão
 
João Guimarães Rosa durante uma de suas expedições pelo interior de Minas Gerais
(Foto: Eugênio Silva/O Cruzeiro)

De forma legítima, aqueles que brigam pela preservação do Cerrado se apropriam, em sua defesa, do Grande Sertão: Veredas. Afinal, esse que é um dos mais importantes romances da língua portuguesa tem como cenários, em grande medida, as paisagens do bioma.
 
Todavia, é também interessante observar que o próprio Guimarães Rosa praticamente não usa a palavra cerrado para designar essas mesmas paisagens. Há nisso, claro, uma escolha simbólica que enfatiza a ideia do sertão, onde se misturam paisagem e estado de alma. Não obstante, isso é também evidência do Cerrado como uma invenção política, científica e cultural mais recente, já que o romance foi lançado em 1956.
 
Nas descrições mais conhecidas de Riobaldo, onde concatenam-se diferentes expressões para descrever o sertão, está presente também a oposição, característica do sertanejo brasileiro, entre aquilo que deve ser valorizado como fruto do trabalho humano e aquilo que vem da natureza - e tem sua beleza e grandiosidade, mas que figura igualmente como algo ameaçador:
 
“O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos… o Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata a mata, madeiras de grossura, até a ainda dessas virgens ainda há lá. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho”.
 
A Invenção do Cerrado
O Cerrado não existe, portanto, como um objeto natural - assim como não existem cientistas que o estudam, agricultores que nele produzem ou ativistas que o defendem. Cada um desses elementos se consolida na verdade como efeito de uma relação. 
 
Da interação entre coisas como solos, espécies de árvores, bichos e um pesquisador surgem um objeto e um conceito específicos com o nome de Cerrado - que sequer é a mesma coisa se esse cientista é um ecólogo de paisagens, um geógrafo ou um botânico.
 
Da mesma forma, do encontro entre um ser humano, a tecnologia agrícola e esses mesmos elementos, nascem outros cerrados - que podem ser o cerrado de Terra Tombada, o cerrado do indígena Xavante, visto como um território mítico que é propriedade de seres sobrenaturais, ou ainda o Cerrado do agroecologista, que tenta produzir com o cerrado, e não apesar dele.
 
Dados e informações sobre o mundo natural por si só não transformam nosso mundo comum. Eles precisam ser mobilizados, traduzidos e apropriados por humanos para gerar objetos que tenham força no jogo político. O professor Raoni Rajão, da Universidade Federal de Minas Gerais, cita, por exemplo, o impacto que teve a sobreposição do mapa das terras indígenas brasileiras sobre o mapa das florestas, mostrando que as comunidades indígenas eram a principal barreira ao avanço da fronteira econômica. Hoje, tornou-se lugar comum dizer que essas terras são o melhor instrumento de conservação da Amazônia, mas antes que o ISA, o Instituto Socioambiental, fizesse essa conta e a transformasse em uma imagem, isso não era um trunfo no jogo político.
 
Explica ele: "Dados de monitoramento não representam simplesmente o desmatamento da Amazônia. Em vez disso, diferentes públicos e configurações de dados (...) produzem diferentes objetos (por exemplo, uma Amazônia ameaçada, uma política bem-sucedida) e sujeitos (por exemplo, ativistas ambientais bem informados, um governo não responsivo)".
 
No embate contemporâneo, cabe a nós, portanto, abandonar qualquer ideia do Cerrado como um dado natural, e da Ciência como uma atividade separada do resto da sociedade, para criar as pontes e alianças necessárias para (re)inventarmos um cerrado e um futuro. Ainda dá tempo.

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Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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