Uma célebre frase do escritor português José Saramago circula amplamente nas redes sociais e na oralidade popular: "É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós." Esse nobre pensamento, vindo de um prêmio Nobel da Literatura, transita entre reflexões psicanalíticas e filosóficas.
Recentemente, essa ideia ressurgiu em uma cena da peça "A Última Sessão de Freud", apresentada no Teatro Goiânia, com atuações primorosas e belíssimo cenário, exibida na Capital, semana passada. O espetáculo, baseado em um encontro fictício entre Sigmund Freud, o pai da Psicanálise, e um professor de Oxford – supostamente C.S. Lewis –, discute temas íntimos, religiosos e filosóficos.
Em uma tentativa alegórica de provar a Freud a existência de Deus, Lewis narra um trecho de um livro em que um camponês, movido pela curiosidade de encontrar o paradeiro mítico de um gigante adormecido, embarca em uma jornada até o topo de uma colina distante. Lá do alto, ele avista sua pequena casa construída sobre uma montanha sinuosa e, apenas dessa perspectiva, consegue perceber que o contorno dela remete a silhueta do tal gigante, esculpida pela natureza. Freud, no entanto, trata a metáfora com ceticismo, preferindo se concentrar em ligar e desligar o rádio repetidamente para ouvir notícias sobre os bombardeios nazistas contra os poloneses.
A tensão da peça se alivia quando Lewis questiona Freud sobre o motivo de desligar o rádio sempre que começa a tocar uma música. Freud responde que a música o desconcentra, afeta suas emoções e o afasta da razão e da lógica. Nesse momento, começamos a compreender sua fragilidade e sua resistência em lidar com os próprios sentimentos, sejam eles bons ou ruins.
O filósofo Friedrich Nietzsche cunhou também uma frase famosa que se tornou um dito popular: "Sem música, a vida seria um erro." A professora de filosofia Lúcia Helena Galvão, em sua palestra Caballion, cita Platão ao advertir: "Cuidado com a música que o governo oferece ao povo. Conheça o Estado pela música que seus governantes promovem. Música é padrão vibratório puro. Evolução nada mais é do que a depuração do gosto. Cuidado com as coisas que puxam as vibrações mais grosseiras à tua consciência. Isso não fica impune."
Impunes ou não, carregamos conosco todas as consequências da nossa própria 'ilha' (ego).
Contém spoiler: A "Última Sessão de Freud" é uma alusão para o fim da vida do grande psicanalista, acometido por um câncer terminal no auge da Segunda Guerra Mundial. No desfecho da peça, Freud, enfim, liga o rádio e se permite ser tomado pela emoção da música.
Escolhi a imagem da Cachoeira do Segredo, na Chapada dos Veadeiros para expressar como nossa 'ilha' é ambivalente. De um lado a resplandescente vegetação iluminada pela luz do Sol, do outro o mato seco e atrofiado pela sombra e o enfraquecimento do solo. Ali, ao centro, o ego, suscetível às vibrações externas.
Escutemos com precaução a música que ecoa de ambos os lados, pois elas continuarão tocando, inerente à nossa 'ilha'.