A filósofa
Agnes Callard publicou recentemente um
texto polêmico na revista
The New Yorker, em que critica, de forma irônica mas firme, a glamourização das viagens. Viajar a turismo, na forma como tanto valorizamos, seria, para ela, apenas uma maneira de inflar nossos egos sem qualquer benefício além da vaidade pessoal.
Em suas palavras: “Viajar nos torna a pior versão de nós mesmos, ao mesmo tempo em que nos convence de que se trata da melhor. É o que podemos chamar de ‘delírio do viajante’.” Em sua defesa, a autora invoca Chesterton, Ralph Waldo Emerson e Fernando Pessoa, entre outros artistas e pensadores que não viam grandes qualidades no ato de viajar.
Mas será mesmo?
O turismo é uma invenção da modernidade — antes dela, não havia espaço para esse tipo explícito de exercício do hedonismo —, mas ganha força de fato a partir do momento em que a venda da força de trabalho é regulamentada e, com ela, as folgas e férias obrigatórias. Trabalho e lazer passam a compor realidades opostas e, aos poucos, surge uma massa de trabalhadores com alguma poupança e tempo livre para viajar.
Primeiro, constroem-se uma justificativa e uma narrativa em torno das ideias de exotismo e de natureza selvagem. As pessoas saíam de férias para se espantar com a grandiosidade das paisagens naturais ou para conhecer culturas exóticas e, então, retornar para casa e relatar o que viram.
Aliás, é importante dizer: em qualquer circunstância, viajar só se completa com esse derradeiro ato (que hoje deixou de ser derradeiro e acontece ao vivo, nas redes sociais): é preciso contar o que se viveu, num gesto que, no fundo, serve para envaidecimento do narrador, invejado e admirado por ter ido e voltado.
Nas palavras de Callard: “É um tipo de conversa que se assemelha à escrita acadêmica e a relatos de sonhos: formas de comunicação movidas mais pelas necessidades de quem as produz do que de quem as consome.”
Com o passar do tempo, nossa ideia sobre viajar sofreu uma mudança sutil. Entendemos que uma mirada exótica sobre outras culturas carrega muito de preconceito. Por isso, viajar passou a ser visto como um gesto de abertura ao outro e, mais que isso, de busca por experiências “autênticas”: sair da anestesia cotidiana, expor-se a riscos e se enriquecer ao vivenciar e dialogar com modos diversos de viver.
Tudo isso, contudo — e por aí vai o argumento da autora — não se sustenta diante de uma análise mais fria. Se já temos dificuldade de nos abrir ao outro em casa, em nossa própria cultura e lugar, por que seríamos capazes de fazê-lo em Buenos Aires, Paris, no Oiapoque ou no Xingu? Mais ainda: de que riscos estamos falando, se nossas viagens são tão seguras que incluem até mesmo um… seguro-viagem?
Além disso, não nos esqueçamos: o turismo tem uma espécie de toque de Midas ao reverso — tende a destruir seus objetos de admiração e fruição. Basta pegar qualquer praia paradisíaca do Brasil ou do mundo, meio século atrás, e compará-la com os dias de hoje. Se não destrói, ele transforma tudo a ponto de deixar irreconhecível.
Não estou dizendo que isso seja necessariamente ruim. Pode ser que leve desenvolvimento e seja bem-vindo pelos moradores, mas todos sabemos que, em muitos casos, gera degradação ambiental e aumento das desigualdades — isso quando não expulsa comunidades pela gentrificação e modernização. Basta ver o caso de tantas cidades europeias às voltas com preços inviáveis nos aluguéis, em função das locações por temporada.
Mas essa nem mesmo é a questão que mais importa aqui. O fato é que, em termos fundamentais e existenciais, o turismo imediatamente transforma seu objeto, tornando impossível a própria experiência almejada. Se vou em busca do modo de vida único de uma comunidade, a partir do momento em que seus moradores passam a me atender como turista e se tornam objeto do meu olhar, deixam de ser aquilo que eram e que me motivou a ir até lá. Se desejo um lugar selvagem, minha própria presença já mostra que o local não tem mais nada de selvagem. É uma impossibilidade lógica, mas gostamos de achar que não.
O que mais demonstra, entretanto, que, na modernidade, viajar é essencialmente um gesto de status é o apelo da exclusividade, sempre presente nos relatos e nas emoções, e que leva os mais privilegiados — como nós — a buscarem experiências que até nos incomoda que chamem de turismo. Como aponta Agnes: “Eu viajo, você faz turismo.” Turismo, fazem as massas; eu sou praticamente um etnógrafo.
Fui, por exemplo, a Torres del Paine, em janeiro, em busca de contato com a natureza e das paisagens selvagens dos Andes patagônicos. Fazer longas trilhas é, afinal, uma forma de nos isolarmos e termos uma imersão de verdade em lugares selvagens, não é?
Primeiro dia: cerca de 1.500 pessoas fazendo a trilha até o mirante na base das Torres — praticamente uma fila única ao longo dos 26 quilômetros de caminhada. Não creio que haja uma foto em que apareço sozinho ou apenas com meu filho. Sempre há um ou mais gringos de botas Salomon e boné North Face passando atrás.
Tudo bem, mas isso foi só o primeiro dia, porque muitos turistas vêm apenas para essa subida e vão embora logo em seguida. Bem, nos cinco dias de trilha, dormimos nos abrigos mantidos por concessionários do parque nacional: havia chuveiro quente, eletricidade, cerveja gelada, restaurante e wifi por módicos 10 dólares a hora. As paisagens, de fato, são as mais incríveis que já vi, e a trilha, realmente imperdível.
Ainda assim, por tudo isso, parece que precisamos repensar nossas justificativas e a maneira como narramos essas experiências. O Paine ainda é uma experiência algo “exclusiva” — por mais que milhares de pessoas percorram o parque todos os anos —, mas não somos esses Richard Burtons que gostamos de imaginar em busca da nascente do Nilo.
“Florença? Vou te indicar um restaurantezinho local que tem o melhor ossobuco do mundo!”
“Você foi a Manaus? Mas comeu a tapioca de Rio Preto da Eva?”
“Você precisa ter a experiência de ir a uma aldeia no Xingu.”
“Alter do Chão já foi tomada pelos paulistas; se quiser ir ao Tapajós, você tem que falar com um amigo meu e organizar um barco pra fazer um passeio pelo Rio Arapiuns — aí sim você vai conhecer a Amazônia!”
“A Chapada perdeu a graça — você tinha que ter conhecido como eu, nos anos 90.”
“A moqueca de Dona Suzana já era depois que apareceu na Netflix; para dizer que veio a Salvador, você precisa ir ao Restaurante da Preta, na Ilha dos Frades.”
Talvez, viajar seja inevitável — afinal, alguém precisa abastecer o Instagram com fotos de pores do sol “autênticos”. Se é status que buscamos, tudo bem, só não finjamos que é iluminação espiritual. Se é contato com o outro, ótimo, desde que aceitemos que ele já está ensaiado para nos receber. E, se for apenas para fugir de nós mesmos… bem, má notícia: para onde quer que vamos, somos a mala que não dá pra despachar.
Prometo que, na semana que vem, faço um texto ao contrário, defendendo o viajar.