O Brasil tem um fenômeno curioso de frases ditas por figuras públicas que, em retrospecto, ganham ares proféticos ou explicativos do país.
Talvez a mais famosa delas, num passado não tão distante, seja a de Dilma Rousseff, em 2010 (tempos mais amenos) — a famosa: “Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder.”
Se à época soou simplesmente confusa, e talvez tenha sido superada posteriormente pela saudação à mandioca e pela afirmação de que atrás de uma criança há sempre uma figura oculta que é um cachorro, hoje, sabemos perfeitamente que todos apenas perdemos de lá para cá.
Todavia, às vésperas do julgamento histórico dos líderes golpistas de 2023, a frase que me vem constantemente à cabeça é a célebre declaração de Roberto Jefferson — então deputado federal, hoje presidiário —, em entrevista a O Globo durante o escândalo do Mensalão: "O Dirceu desperta em mim os instintos mais primários, que vão desde a violência física até o nojo."
Fazem 20 anos — e ainda faltavam, portanto, oito para o 2013 que tirou o gênio da garrafa —, mas, se removemos da frase os personagens, já está aí a política convertida em guerra de trincheiras, a democracia regredida àquilo que deveria exatamente remover da esfera pública, isto é, a demonização do outro, os afetos assumindo o controle da vida para esvaziar o jogo político.
Não interessa aqui avaliar quem foi ou é José Dirceu, nem tampouco encontrar na personalidade de Jefferson a explicação para a denúncia do Mensalão e o ataque ao então secretário da Casa Civil. Tomada em retrospecto, a frase revela o afloramento, já ali, de um tipo de ressentimento que se tornaria a tônica de nossa vida coletiva e levaria ao impeachment de Dilma, à Lavajato, à eleição de Bolsonaro, à terceira vitória de Lula, à tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 e a todo o espetáculo circense, nas ruas e redes, que acompanhou esses anos todos.
O mais incômodo na frase de Jefferson é caber nas bocas de todos nós, à direita ou à esquerda. Tornamo-nos todos ressentidos e, em alguma medida, temos a certeza de que os problemas do Brasil são culpa dos que estão do outro lado do espectro político. A frase cabe na minha boca quando penso em Bolsonaro, Augusto Heleno, Ricardo Salles, Damares Alves — e, pior ainda, quando penso em meu vizinho de camisa da seleção, na prima que acampou na frente do quartel e naquele um dia amigo que deixei para trás.
A pergunta portanto é: como se conserta uma sociedade que passou a ser regida pelo ressentimento?
A única certeza é a de que isso não passa por menos política — exige mais; e de que política que merece esse nome só existe quando há esfera pública verdadeira, e que esfera pública verdadeira significa que o valor de direitos e garantias fundamentais esteja tão acima ou tão dentro de nós que a ideia de um golpe seja inconcebível.
Por isso, se tudo correr como se espera, no dia da próxima semana em que o ministro Cristiano Zanin, presidindo a 1a Turma do STF, proferir as sentenças de condenação de Jair Bolsonaro e seus aliados, não quero abrir um champanhe. Vou me servir, mais discretamente, uma modesta dose de cachaça — não para comemorar, mas para honrar o dia histórico da primeira condenação de gente graúda, incluindo militares de alta patente, numa longa história de golpes.
Talvez não mude nada, mas pode ser o começo de algo novo. Bolsonaro é asqueroso em muitos quesitos — difícil encontrar um ser humano pior —, mas o que mais provoca asco é o escárnio e a hipocrisia com que trata a política e a democracia. Mais que fazendo piada com a morte na Covid, mais que insinuando que meninas imigrantes só poderiam ser prostitutas, mais que em seu apreço por tudo aquilo que destrói, é na inata incapacidade de compreender o valor de uma constituição democrática que o pior presidente da história de um país farto em maus presidentes mostra toda a sua maldade e desumanidade.
Tomara, por isso, que se firme o recado de que golpista aqui não mais se cria, de que democracia não se relativiza, de que aqui até ex-presidente covarde o general de quatro estrelas vai preso se brincar com isso.
Ressentimento se enraiza na sensação de falta de justiça — real ou imaginária. Portanto, que se faça justiça e que, quem arquitetou ou participou da tentativa de golpe de 2023, vá para a cadeia. Não quero mais a voz de Roberto Jefferson na minha cabeça.
Parafraseando outra manifestação célebre de nossa época — essa dita no próprio Supremo: “Me deixa de fora desse seu mau sentimento".