Assisti a um vídeo com o psicanalista Paulo Schiller e fiquei muito curiosa com o seu tema de pesquisa, por ser algo que também me inquieta, há algum tempo. O que leva as pessoas a apoiarem líderes autoritários? Schiller transformou em livro décadas de escuta em consultório para responder a esta pergunta, e o resultado está na obra “A Paixão Pela Mentira, a família e as tiranias”, lançada em julho.
Schiller investigou a relação entre os traços psicológicos dos apoiadores de regimes autoritários e suas histórias familiares e afirma que não existem respostas simples para uma questão tão complexa, mas, para ele, o que se aprende sobre autoridade e submissão, em casa, tende a se refletir em como o indivíduo se comporta com o outro, na sociedade e em suas escolhas políticas.
Em entrevista ao jornalista Eduardo Ribeiro, para o jornal Valor Econômico, em julho, Schiller afirmou que “o anseio de que possa existir alguém que sabe o que é bom para nós, é uma tentação que nasce do prolongamento da relação com um pai todo poderoso, que dirige as nossas vidas. Pais autoritários instituem, desde cedo, a submissão como um modo de existir. É ele que será transposto para o ambiente político”.
Em anos de terapia, também aprendi que uma forma de sermos fiéis aos nossos pais é repetirmos em atos e falas aquilo que nos fez mal. Trata-se de um exercício de fidelidade aos antepassados, e que não é consciente. Infelizmente, os traumas podem causar mais impactos e reverberações, que os aspectos positivos nas relações.
E Schiller faz amarrações muito pertinentes nesse sentido. Ele argumenta que as famílias têm diferentes graus de transgressões morais, comportamentos que ultrapassam o limite da ética, em maior ou menor grau. Essas transgressões também existem nos governos de qualquer natureza, mesmo que veladas. Mas nas tiranias, elas são escancaradas e funcionam como uma autorização, um salvo-conduto para as pessoas trazerem para a esfera pública, trangressões já vivenciadas, no ambiente privado.
"A Paixão Pela Mentira” desperta ainda mais interesse em um momento em que o número de líderes autoritários cresce, no mundo. E o que mais chama a atenção é o apoio popular expressivo a esses líderes.
O estudo anual, que mede o Índice de Democracia em 167 países, da revista britânica The Economist, apontou que 39% da população mundial, ou dois em cada cinco habitantes do planeta, vivem sob regimes autoritários, em 60 países, atualmente. Um fenômeno sem precedente, desde os anos 30.
Em muitos desses países, há traços comuns entre os líderes autoritários: incitação à violência; estímulo ao sentimento de ódio pelo adversário e pelo diferente; o adversário político é transformado em um inimigo a ser eliminado; exaltação do machismo e o ódio ao feminismo e aos homossexuais; armamento da população, como saída para a falta de segurança; prática do extermínio; recurso à mentira de forma sistemática; negação da realidade, como o aquecimento global e a crise climática; pauta de costumes regressiva; perseguição ao pensamento crítico, à jornalistas, aos intelectuais; interferência no sistema de ensino, em escolas e universidades e prática de censura. A lista é extensa.
A crise financeira do capitalismo, iniciada em 2008, e suas consequências, como a depressão econômica, o desemprego e o aumento da criminalidade, são fatores que ajudam a explicar a ascensão de líderes que se apresentam como "salvadores da Pátria”.
Para Schiller, se buscamos a origem e a solução dos nossos males em algo que não nos concerne, se nos livramos da responsabilidade pelos nossos atos, tendemos a entregar nossa sorte a políticos, que dizem saber o que é bom para cada um de nós. Aí mora o risco de nos entregarmos cegamente e sem questionamentos. É quando acontece a paixão pela mentira e abrem-se as portas para ascensão do autoritarismo.