Adriana Marinelli
Goiânia - Aos 37 anos, o engenheiro civil Romeu Neiva já acumulou uma boa dose de experiência profissional em canteiros de obras. Ao longo da carreira, viu de perto problemas recorrentes, como retrabalho, desperdício de materiais, falhas de comunicação entre equipes e orçamentos estourados antes mesmo de o concreto secar. Curiosamente, porém, foi longe do barulho das betoneiras, mais precisamente diante de um computador, que ele encontrou um caminho para enfrentar um dos principais gargalos da construção civil no Brasil: a falta de organização nos projetos.
Sócio-fundador da Coordly e diretor da DIM Inteligência em Projetos, duas startups goianas, Romeu tem apostado no poder da tecnologia, com destaque para o uso de inteligência artificial (IA), para transformar a rotina de negócios voltados para a construção civil. IA é o campo da tecnologia que desenvolve sistemas capazes de simular a capacidade humana de aprender, raciocinar e resolver problemas. A proposta, segundo o próprio engenheiro, é tornar mais eficiente um setor historicamente resistente à inovação.
“Antes de iniciar uma obra, você precisa centralizar as informações e fazer com que todos os profissionais envolvidos estejam consultando os mesmos dados. A plataforma com a IA promove essa centralização, tornando o processo mais eficiente. Facilitamos uma metodologia que já é muito usada no setor, o BIM”, explica Romeu. BIM, sigla para Building Information Modeling, é a modelagem de informações da construção. Em termos práticos, trata-se da digitalização do projeto para prever problemas antes que eles apareçam de fato. A combinação da metodologia com a IA nos negócios conduzidos por Romeu representou o casamento perfeito, garantindo avanços significativos, como ele mesmo pontua.
Na prática, a inteligência artificial funciona como um “cérebro digital” que aprende com os dados dos projetos já realizados e ajuda a tomar decisões mais inteligentes e rápidas. Isso permite prever erros, evitar desperdícios e até indicar se há problemas com normas técnicas ou exigências legais. Essa capacidade de análise, que antes exigia horas de trabalho humano e muita experiência, passa a ser feita em segundos e com grande precisão.
A Coordly, empresa dirigida por Romeu, nasceu em Goiânia, em 2019, e desde então cresceu em número de clientes, em sócios e também em visão estratégica. Focada em atender construtoras e incorporadoras, a startup se fortaleceu com Carlos Barcelos, que assumiu como diretor financeiro, e Kassio Khaleb, diretor de tecnologia. Kassio, aliás, começou como desenvolvedor e se tornou sócio em 2022. Hoje, a plataforma oferece desde um plano gratuito, ideal para pequenas e médias empresas, até modelos personalizados em white label, que permitem que outras organizações incorporem a solução com sua própria identidade.
Carlos Barcelos, Romeu Neiva e Kassio Khaleb, sócios da Coordly (Foto: divulgação)
A integração da IA ao sistema foi uma verdadeira transformação para os negócios. É o que garante Romeu. “Começamos esse trabalho [com IA] no ano passado com o CEIA, que é o Centro de Excelência em Inteligência Artificial da Universidade Federal de Goiás (UFG), e a EMBRAPII [Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial]. Hoje, estamos testando um modelo de linguagem que trabalha os dados da coordenação de projetos que já estão na plataforma”, detalha Romeu ao mencionar que, a partir da análise das informações, o sistema pode sugerir caminhos, antecipar situações e cruzar dados de obras, tudo isso com poucos cliques.

Um exemplo fácil de entender como tudo funciona, segundo o diretor-executivo da Coordly, está na prevenção de conflitos entre diferentes áreas do projeto, como estrutura e arquitetura. “Com a metodologia BIM aliada à inteligência artificial, conseguimos detectar, ainda na fase de projeto, que uma viga de concreto iria passar exatamente onde o arquiteto colocou uma janela. Ou que uma tubulação está prevista para cruzar uma viga”, destaca. Isso evita que a obra precise parar para que esses erros sejam corrigidos, gerando economia de materiais, tempo e mão de obra.
Na prática, a plataforma da startup vem sendo aplicada em diferentes fases dos empreendimentos. Em um case real, por exemplo, a equipe percebeu, com o auxílio da IA, que o arquiteto de um edifício residencial em Goiânia estava desenvolvendo o projeto com base em uma versão desatualizada da proposta, o que poderia comprometer toda a implantação de uma piscina na área comum. Se isso tivesse seguido adiante, sem os devidos reparos identificados pela tecnologia da startup, haveria desperdício de tempo, retrabalho e perda de dinheiro. A centralização de informações na plataforma e o uso de IA alertaram as equipes a tempo. Para Romeu, esses exemplos mostram que, quanto mais cedo a tecnologia entra no processo, maior a eficiência e menores os riscos.
Parte de apresentação de um projeto real da startup goiana que usa inteligência artificial para prever possíveis erros na construção civil (Foto: Coordly)
É como se a inteligência artificial estivesse atuando como um consultor virtual altamente capacitado, disponível o tempo todo para ajudar as equipes técnicas a tomar melhores decisões. Isso, segundo o engenheiro civil, representa um ganho enorme de produtividade, especialmente para pequenos negócios, que muitas vezes não têm acesso a grandes equipes ou especialistas.
O impacto é real. Romeu estima que, com o uso da metodologia BIM aliada à IA, é possível reduzir em até 35% o desperdício e o retrabalho nos canteiros de obras. “Isso ainda otimiza o tempo do profissional, sem substituí-lo", enfatiza.

Para funcionar bem, no entanto, o modelo precisa ser alimentado com grandes volumes de dados. E aí entra um dos desafios enfrentados por pequenas e médias empresas: o custo para manter tudo sempre atualizado e com pessoas capacitadas que dominem a tecnologia para conduzir tudo. "No nosso caso, nós buscamos recursos por meio das linhas de fomento disponíveis no mercado", revela o diretor da startup, ao citar programas como Tecnova e InovaCred, operados pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), com foco em inovação para pequenas e médias empresas.
Embora a Coordly já esteja à frente de muitos concorrentes ao investir em inteligência artificial, esse movimento ainda está apenas começando entre os micro e pequenos empreendedores de Goiás. Atualmente, 24% deles estão adotando essa tecnologia em seus negócios. O caminho para a mudança já se mostra claro e aponta para uma aceleração desse processo. Uma
pesquisa recente do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) Goiás, divulgada na primeira quinzena de maio, revela que, apesar da "timidez" atual, o cenário está prestes a mudar, com a adoção de IA ganhando força em um futuro próximo.
Esse movimento ocorre em paralelo ao expressivo crescimento do número de microempreendedores individuais (MEIs) no Estado. Em uma década, o total de registros saltou de 208 mil em 2015 para 589 mil em 2025, um aumento de 183%. Atualmente, mais de 456 mil MEIs estão ativos em Goiás, um reflexo do crescente interesse pela formalização como caminho para acesso a benefícios como CNPJ, crédito, previdência e novas oportunidades no mercado formal, impulsionando a inclusão produtiva e a redução da informalidade.
Com o crescimento acelerado do número de MEIs, a expectativa é que o uso da inteligência artificial entre esses empreendedores também aumente nos próximos anos. A tendência é que ferramentas de IA, hoje mais presentes em empresas maiores e mais estruturadas, se tornem gradualmente cada vez mais acessíveis a negócios menores, contribuindo para melhorar a gestão, reduzir custos e ampliar a competitividade nos vários ramos de atividade.
Para André Luis, gestor de Inteligência Artificial do Núcleo de Inovação da Unidade de Soluções do Sebrae Goiás, o avanço da IA entre os micro e pequenos negócios deve se revelar de forma mais rápida do que muitos imaginam. De acordo com o especialista ouvido pela reportagem do jornal A Redação, uma mudança expressiva certamente já será observada em um ano, especialmente com a popularização de ferramentas gratuitas e a crescente pressão da concorrência. “A IA serve para o grande, para o médio, para o nano. Quanto menor a empresa for, mais sobrecarregado o empreendedor está. Os processos repetitivos podem e devem ser digitalizados”, avalia.
André Luis, gestor de Inteligência Artificial do Núcleo de Inovação da Unidade de Soluções do Sebrae Goiás (Foto: divulgação)
A resistência, segundo ele, está menos na tecnologia e mais na mentalidade dos empresários. “Existe uma trava. Meu discurso para esses empresários é o seguinte: como você pede um carro por aplicativo? Usa a tecnologia para isso. Todo mundo tem streaming hoje em dia... A tecnologia também está aí. E por que tanta resistência em digitalizar empresas?”, questiona. Conforme pontua André Luis, os maiores entraves são o medo e a ideia de que IA custa caro. “A economia digital é o momento. É deflacionária. Os preços vão diminuindo. O concorrente vai se atualizando. E esse concorrente, que pode estar em qualquer lugar do Brasil ou do mundo, pode largar na frente. Eu costumo dizer que o empreendedor que não se atualiza vira livro de história”, pontua.
O especialista destaca que o uso da IA permite aos empreendedores focar no que realmente importa. “As pessoas têm que se conscientizar e dedicar energia onde a máquina não entra. Em uma loja de ferragens, por exemplo, é impossível cada vendedor ter decorado os produtos que cada cliente costuma comprar. A IA faz isso! Ela entra para auxiliar esse vendedor. A tecnologia inserida em um programa controla a quantidade de pedidos, frequência de compras... Uma pesquisa que demoraria um tempo considerável, ele resolve num clique”, exemplifica.
No quesito investimento, no entanto, é difícil determinar um custo fixo para implantar inteligência artificial em uma empresa, já que o valor varia conforme o tipo de serviço, a complexidade da solução e o formato de uso, que pode ir desde plataformas gratuitas até modelos personalizados mais robustos. A realidade, segundo André Luis, é que se trata de um investimento com retorno cada vez mais rápido.
Ainda de acordo com recente
pesquisa do Sebrae Goiás, a geração de textos é o recurso mais utilizado com auxílio da inteligência artificial entre os micro e pequenos empreendedores que já adotaram a tecnologia. Esse tipo de ferramenta, que pode ser acessada gratuitamente em algumas plataformas, representa 48% dos usos registrados no levantamento e tem ajudado empreendedores a produzir conteúdos diversos com mais agilidade.
Em seguida, aparecem a criação de conteúdo para redes sociais (44%), edição de imagens e vídeos (29%) e atendimento ao cliente (25%). Essas tarefas, geralmente repetitivas e, às vezes, demoradas, são automatizadas com a ajuda da IA, permitindo que o empreendedor ganhe tempo e melhore a qualidade do serviço.
“Então, para aqueles que alegam a questão do custo, qual é a explicação para não usar ferramentas gratuitas que estão aí à disposição? O dono do negócio precisa abrir a mente e entender que ele precisa acompanhar o fluxo”, alerta André Luis, ao enfatizar que o Estado é referência em inovação, abrigando o CEIA (Centro de Excelência em Inteligência Artificial) e sendo pioneiro no Brasil ao oferecer um curso de graduação específico em IA, na Universidade Federal de Goiás.
Em Rio Verde, cidade goiana onde o agronegócio pulsa forte, a tecnologia também germina. Fundada em 2020 e incubada no IF Goiano - Campus Rio Verde, a XR Seeds é uma startup que utiliza inteligência artificial para facilitar a rotina de empresas sementeiras espalhadas por estados como Goiás, Mato Grosso e Bahia. A proposta é automatizar a avaliação da qualidade das sementes, trazendo agilidade, precisão e confiabilidade para um processo que, até então, dependia da análise manual feita por técnicos.
“A XR Seeds nasceu a partir de pesquisas que eu, a Cássia e o Douglas, sócios da startup, estávamos realizando. Atuávamos junto a empresas sementeiras e identificamos a necessidade de avaliações que determinassem, de forma mais ágil, a qualidade das sementes”, conta Arthur Almeida Rodrigues, diretor-executivo da startup, à reportagem do AR.
Sócios da XR Seeds: Douglas Almeida, diretor de tecnologia; Cássia Lino Rodrigues, diretora de operações;
e Arthur Almeida Rodrigues, diretor-executivo (Foto: divulgação)
A solução desenvolvida pela XR Seeds utiliza a análise de imagens captadas por celular ou até mesmo por raio-X para avaliar padrões de qualidade física das sementes com o apoio da inteligência artificial. “No milho, o teste de infestação por pragas é demorado, e a gente consegue realizá-lo em poucos minutos, utilizando a tecnologia para determinar a qualidade”, afirma Arthur. Em vez de substituir os métodos tradicionais, a tecnologia atua como um complemento, ajudando a reduzir falhas humanas. “A ideia de avaliar por qualidade de imagem surgiu justamente para agilizar a tomada de decisão, mas também para eliminar a subjetividade dos resultados”, explica o diretor.
Análise da qualidade das sementes passa a ser feita com mais precisão e mais agilidade graças ao uso da IA (Foto: divulgação)
É nesse ponto que a inteligência artificial faz toda a diferença. Ao ser programada com critérios padronizados, ela elimina o risco de interpretações variadas entre os analistas, garantindo uniformidade nas decisões. “Você programa a IA com alguns padrões e ela vai seguir o mesmo padrão para tudo”, explica Arthur. O resultado é um ganho direto para as empresas, que passam a selecionar lotes com mais eficiência e a reduzir perdas no campo.

A trajetória da XR Seeds ganhou impulso com parcerias estratégicas e a aprovação em editais de fomento, como o Catalisa ICT, iniciativa do Sebrae que transforma conhecimento científico em soluções de alto impacto. “Esse edital foi fundamental para o desenvolvimento de uma nova tecnologia na XR Seeds. Também foi essencial porque ofereceu bolsas aos sócios, o que permitiu uma dedicação maior ao projeto e à startup”, conta Arthur. Mesmo sem serem especialistas em inteligência artificial, os sócios encararam o desafio investindo em capacitação e contando com o suporte técnico viabilizado pelos recursos conquistados. “Conseguimos pessoas fundamentais para nos ajudar a avançar com a tecnologia e a desenvolvê-la”, acrescenta Arthur, ao avaliar como acertada a decisão de apostar em IA.

Quem também já embarcou no universo da inteligência artificial e colhe os primeiros frutos é o goianiense Rodrigo Maktub, de 34 anos. Empreendedor do ramo varejista, ele é o responsável pela marca ‘Achados e Vantagens’. Rodrigo comanda uma loja de produtos personalizados que começou on-line, em agosto de 2024, e recentemente ganhou um ponto físico em Goiânia.
Mesmo sendo novo no mundo dos negócios, Rodrigo decidiu apostar na tecnologia desde o início. “Quis começar certo. A IA me ajuda a entender melhor o cliente e oferecer um atendimento mais rápido e eficiente”, afirma. Para isso, ele prioriza o uso de ferramentas gratuitas ou de baixo custo, que considera acessíveis mesmo para quem está começando.
Além do atendimento ao consumidor, Rodrigo utiliza ferramentas de IA para manter o controle financeiro da empresa, equilibrando receitas e despesas com mais precisão. Outro uso importante está na gestão de marketing digital. A tecnologia, nesse caso, é aplicada para identificar o perfil do público-alvo, segmentar anúncios patrocinados e analisar o desempenho das campanhas nas redes sociais. “Consigo saber quais conteúdos funcionam melhor e fazer ajustes rápidos. É uma ajuda enorme para quem está começando e tem que cuidar de tudo ao mesmo tempo”, destaca.
Rodrigo Maktub usa inteligência artificial desde que começou a empreender (Foto: Adriana Marinelli/jornal A Redação)
Com o crescimento do negócio, Rodrigo pretende expandir ainda mais o uso da inteligência artificial. Seu objetivo agora é buscar mais conhecimento sobre o tema para aplicar novas soluções de forma estratégica. “A gente vai aprendendo aos poucos, mas quero entender mais para usar a tecnologia em outras áreas da empresa. Sei que tem muito potencial ainda para explorar”, afirma.

Para apoiar empreendedores como Rodrigo, que têm sede de conhecimento e o desejo de impulsionar seus negócios com o uso da tecnologia, o Sebrae oferece uma série de opções de capacitação voltadas para a realidade dos pequenos negócios. Entre as iniciativas, estão palestras e cursos gratuitos, disponíveis tanto on-line quanto presencialmente, por meio da
Escola de Negócios e da
Loja Virtual. As programações são atualizadas com frequência, contemplando Goiânia e diversas cidades do interior de Goiás, facilitando o acesso ao conhecimento e à qualificação em temas como inovação, finanças, marketing digital e inteligência artificial.
Para quem já incorporou a IA à rotina dos negócios, a visão de futuro é otimista e estratégica. “A inteligência artificial não veio para substituir o ser humano, mas para ampliar nossa capacidade de decidir melhor, errar menos e crescer com mais eficiência. Isso já ficou claro para mim”, arremata Rodrigo Maktub.
