(Foto:Nicolau Lutz)
Zurique - Acordei no meio da noite, sentindo uma presença estranha no quarto. Abri os olhos e vi algo pulando no escuro. Tomei coragem e ao acender a luz, descobri um gafanhoto ao lado da cama. Lembrei-me de Sir Paul, mas apesar de achá-lo muito simpático, não lhe dei nenhum nome. Resolvi levantar-me e levá-lo ao jardim, imaginando que meu refúgio não era o habitat mais adequado a gafanhotos verdes.
Meu refúgio é um pequeno quarto no sótao de minha casa, onde recebo hóspedes e me recebo nas noites em que passo lendo ou escrevendo. Há apenas uma cama, cercada de livros por todos os lados, e uma pequena janela, perfeita para se observar a lua cheia de madrugada. Foi em uma dessas noites, de pouco sono, que recebi a visita inesperada. Na realidade, não sei a diferença entre gafanhotos, louva-a-deus, grilos ou os temidos « grasshoppers ». Mas, desde criança gosto de observá-los e surgiu daí essa simpatia gratuita e a leve desconfiança de que sempre trazem boas notícias.
Depois de depositar meu amigo no jardim e respirar um pouco do ar fesco da noite, voltei ao sótão que me pareceu um tanto mais vazio. Me perguntei se não deveria tê-lo deixado pelo menos por uma noite, quem sabe, trazia algum recado. Dormi novamente e me esqueci da rápida visita.
Há alguns dias, chegando em casa, me deparei novamente com um pequeno gafanhoto verde em cima da porta. Lembrei-me então do visitante noturno, sorri e achei que deveria ser um bom sinal. Entrei e deixei-o aproveitando os últimos raios de sol amarelados do outono.
Hoje, ao chegar em casa novamente, meu amigo verde estava me esperando em cima do trinco da porta. Não tive coragem de entrar e deixá-lo para trás. Coloquei-o em cima de uma folha e pensei em deixá-lo morar no grande vaso de antúrio da sala. Mas ele não gostou da minha proposta, não desceu da folha. Não adiantou insistir.
Então decidi levá-lo novamente ao sótão. Subi as escadas, sem que ele se mexesse. Chegando ao topo de três andares, pulou imediatamente ao chão e pareceu familiarizado com o ambiente. Achei graça. Não quis entender, nem me perguntei nada, resolvi apenas conviver com um gafanhoto solto no meio dos livros e papéis.
Deixei a janela aberta, assim poderia sair, como talvez um dia entrou. E me distrai a pensar que as coisas, pessoas e gafanhotos vão e voltam, nem sempre os mesmos, isso não importa, mas algumas presenças ficam. E devem ficar. Entre um jardim outonal ou um sótão soterrado de livros, cada um faz a sua escolha. E não vou decidir por ninguém, nem mesmo por um inseto que, aconselhada por meu sobrinho Nino, quando tinha apenas quatro anos, deixei de perseguir, há muitos anos.
Ultimamente, o único inseto que ainda sofria da minha fúria assassina era a larva de uma traça que costuma invadir o armário da cozinha. Mas também desisti de exterminá-la, depois do dia em que a observei atentamente, movendo-se de um lado ao outro da chapa elétrica do fogão, refletida no vidro escuro de indução, aquela minúscula porção de vida, esticando e encolhendo-se, vencendo mínimos milímetros com grande esforço, levantando a a cabeça, sentindo o ar, buscando o caminho, mudando o rumo, quando eu aproximava minha mão. Havia tanta vida ali, naquela pequeneza, que não me senti autorizada a matá-la, por vício ou excesso de higiene.
Descobri que não se pode fazer mal a quem se olha bem de perto, no fundo dos olhos. Gosto do meu gafanhoto solto no meio dos livros e a janela vai estar sempre aberta.