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Fabrício Cordeiro
Fabrício Cordeiro

Crítico de cinema e curador da Goiânia Mostra Curtas 2013 - Mostra Municípios / fabridoss@yahoo.com.br

Sala de Cinema

Era uma vez eu, Cris

Leia crítica do filme 'Eles Voltam' | 01.04.14 - 12:32
Por Fabrício Cordeiro
 
Pronto desde 2012, quando venceu o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (ao lado de Era uma Vez Eu, Verônica, de Marcelo Gomes), Eles Voltam, mais um da grande safra pernambucana, finalmente ganhou distribuição e tem rodado pelo país. É lançado pela Vitrine Filmes, responsável por circular alguns dos títulos nacionais mais importantes dos últimos dois anos, no mínimo, além de estrangeiros que todo mundo deveria ver, como o argentino Las Acacias e o uruguaio La Vida Útil.
 
Em breve comentário sobre Eles Voltam, o Inácio Araújo comentou em seu blog na Folha que havia uns tantos de Kiarostami, Hitchcock, Bresson, Rossellini e, puxando o Alcino Leite pra conversa, também Antonioni no filme de Marcelo Lordello, todos nomes que tendo a concordar, com maior ou menor intensidade. Pensando bem, o Hitchcock eu não chego a ver ali, mas é um trabalho capaz de dialogar com toda essa gente grande, sem dúvida.
 
Mas faz mais de uma semana desde que assisti a Eles Voltam no Cine Cultura e a lembrança de Truffaut ofusca todos esses. A menina sozinha, depois encontrada e desencontrada; as companhias inesperadas; o sono solitário e independente, quase atrevido; o flagrante na piscina e, pouco depois, já na água, as curtas conversas aparentemente desimportantes sobre a vida; a visita à praia, entre família e uma recém conhecida; os estranhos retornos, reencontros, a menina já um tanto diferente, e incapaz de não contestar frente a frente outra geração (porque, tão jovem, sente que a breve experiência vale tudo, e talvez não esteja de todo errada), à mesa do café da manhã, farta e talvez excessivamente acolhedora.
 
O que se tem aqui, a princípio, é um filme de abandono. Um casal de irmãos largado pelos pais à beira da estrada. Uma lição aplicada por conta de uma briga, supõe-se. Lá são deixados, e lá devem se virar. Ele, mandão e pouco paciente, mais velho, se vira primeiro. Ela, de nome Cris (Maria Luiza Tavares), então sozinha, toma seu rumo. Encontra pessoas, faz amizades tão fáceis de evaporar, conhece gente e lugares que provavelmente não conheceria não fosse o acaso do abandono inicial. Porque, de certa forma, Eles Voltam é também sobre o protecionismo sufocante, as preocupações de estar "solto por aí" em "lugares que nem se imagina", e não num carro, num condomínio ou atrás do portão gradeado duma garagem.
 
Acho que a primeira meia-hora, ou quase isso, é toda na estrada, quase sem falas. Lordello toca esse começo tão bem, dando tempo às cenas, ao rosto pensativo e intrigante - ela nunca se desespera - de Maria Luiza, que embora me lembre Truffaut em sua trajetória, talvez tenha olhos de Godard (do nada, e no nada, ela resolve fazer uma panorâmica da estrada à sua frente), que por um instante não nos perguntamos se tudo se passaria ali, ao lado da rodovia. O filme, que aos poucos se torna menos sutil, precisa desses bons minutos, e é preciso coragem para mantê-los, fazer cinema daquilo, do "nada" aparente, e, enfim, soltá-lo no mundo.
 
Essa não discrição de Lordello, por sinal, encontra lugar no fato de termos em Eles Voltam a perspectiva de uma garota de doze - ou onze? - anos. Não há nenhum receio na distinção de classes que o cineasta quer apresentar, entre aqueles que Cris esbarra no caminho e a preocupadíssima recepção dos entes queridos. Ironicamente, o único perigo real presente no longa não se destina a Cris ou ao seu irmão; sequer aparece na tela, ainda que seja revelado no momento certo.
 
O rápido confronto com o avô, por sua vez, deixa claro o poder da experiência passada pela garota. No entanto, mais importante que o enfrentamento em si, direto e simples, talvez seja a vontade de enfrentar, e, no caso de Lordello, o que me parece ser uma vontade de fazer com que Cris passe a existir. Pois o primeiro plano de Eles Voltam, hoje penso, não poderia ser diferente: alto, muito aberto, as estrada e os carros distantes, e aqueles dois mal são pessoas, e sim apenas dois pontos arremessados num filme. Depois são filmados cada vez mais próximos, os rostos muito fortes, e Peu (Georgio Kokkosi), o irmão, também deixa a impressão de que daria outro bom filme, mas ele segue pro lado que a câmera prefere não ir. A riqueza de Eles Voltam parece estar nesse processo de transformação da menina Cris (não de uma garota qualquer; dela, aquela experiência é dela), captado por Lordello com tamanha naturalidade.
 
Truffaut foi o grande cineasta das faces infantis. Filmava como poucos a primeira juventude, curiosa e, ironicamente, em certo conflito com a educação e o aprendizado. O melhor elogio que tenho a Lordello é que seu Eles Voltam leva a uma vontade de rever, mais uma vez, Os Incompreendidos (1959). E, assim como Truffaut e Jean-Pierre Léaud/Antoine Doinel, seria um prazer visitar Lordello e Maria Luíza Tavares/Cris mais três ou quatro vezes no futuro.
 


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