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Cássia Fernandes
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Cássia Fernandes é jornalista e escritora / lcassiaf@gmail.com

Alinhavos

Cara lavada e mentiras deslavadas

Todos nós praticamos a propaganda enganosa | 16.09.14 - 17:00 Cara lavada e mentiras deslavadas .
 
Goiânia - Há coisa de algumas semanas – são tão numerosas e efêmeras essas modas que a gente perde a precisão do tempo – a onda no Facebook era as mulheres publicarem fotos com a cara lavada. Essa onda começou não sei onde com não sei quem, como uma forma de protesto por não sei o quê. Ah, parece que sei sim. Dizem que foi uma mulher que deu início, pra protestar contra a imposição de um padrão de beleza feminino, de juventude eterna, que esconde as diferenças e as marcas do tempo etc.
 
Sim, eu poderia pesquisar no Google e descobrir quem, quando, como e por que começou, mas, sinceramente, não estou precisada de lead e sublead, e qualquer precisão jornalística. Ando saturada de informação precisa e desnecessária. Necessito antes da imprecisão da arte. Vontade de escrever um texto impressionista.
 
Não que esse discurso, causa ou protesto não sejam importantes, mas, com licença, também protesto!  Protesto contra o excesso de verdade. O mundo já anda feio demais para precisemos poluí-lo ainda mais com a revelação de nossos defeitos. Algumas amigas (são loucas!) publicaram suas fotos sem maquiagem. Eu que sou maluca, mas não sou doida, não fiz isso. Quem me conhece para além da virtualidade e da fotografia sabe por quê.

Não tenho a pele assim tão lisinha, tão isenta de sardas ou de rugas, minha câmera tem um tipo de photoshop embutido que automaticamente já a uniformiza e oculta o indesejável.  Também uso sempre maquiagem (pode ser resultado de trauma, pois na infância, na escola, tive o apelido de Sardalina – infame nome de um creme para eliminar as sardas que anunciavam na TV e que, se não apagava as sardas, aniquilava a auto-estima das sardentas). Além disso, claro, porque não tenho mais 20 anos.
 
São poucos os que têm, portanto, o azar de me ver de cara lavada e contemplar outros inúmeros defeitos que só A bailarina de Chico Buarque é que não tem. Que padeçam os que convivem comigo na difícil intimidade. Aos demais prefiro poupar. Deixe que nos idealizem os desconhecidos, pois como diz um texto atribuído a Millôr Fernandes (confirmem, por favor, não possuo o livro), “como são admiráveis as pessoas que não conhecemos bem”. Ah, mas então você mente, vende uma imagem que corresponde a realidade? Claro, como todo o resto da humanidade, quero causar boa impressão.
 
Naturalmente também enxergo os exageros no uso das cirurgias plásticas, tratamentos estéticos, maquiagem e photoshop (com que apagam até o umbigo e outras concavidades das modelos), mas esses pequenos retoques que damos à nossa aparência integram aquele rol de mentirinhas necessárias à vida em sociedade e são, de resto, um importante artifício da sedução feminina.  Trata-se de um tipo de propaganda enganosa – é bem verdade – mas a propaganda está de tal forma entranhada em todas as situações de nossa vida, que não podemos como seres sociais abrir mão dela.
 
Todos nós ou a maioria, quando nos apresentamos em sociedade tentamos colocar na vitrine as nossas qualidades e não os nossos defeitos, sob o risco de afastar de susto a clientela. Tentamos ser boas vitrines de nós mesmos, ainda que nem sempre com sucesso.
Toda propaganda, seja aquela que a gente faz da gente nas redes sociais, nas relações sociais, seja a que é veiculada na mídia, sabe-se bem, traz um maior ou menor grau de mentira. No caso da propaganda política, o grau é altíssimo. Na publicidade de produtos e serviços, não é muito diferente, tanto é que os órgãos de defesa do consumidor estão sempre atentos para punir a tal da propaganda enganosa e a legislação fixa certas regras para proteger o consumidor, regras constantemente ludibriadas.
 
Lembremos, por exemplo, do caso daquela norma que obriga os anunciantes de ofertas e promoções a apresentar as condições em que elas são válidas. Os anunciantes fazem o que mandam a lei sim.  Nos anúncios de TV, naquela oferta maravilhosa de um belo carro, quem consegue ler os caracteres minúsculos que passam correndo na parte inferior da tela? Quem é capaz de decifrar, sem o uso de lupa, as informações ao pé da página no anúncio daquela revista?
 
E não bastasse os textos dos anúncios não serem de todo verdadeiros, há a grande mentira das imagens manipuladas. A foto que aparece naquele anúncio foi cuidadosamente produzida por um fotógrafo hábil, que fabricou as condições ideais de luz, de enquadramento e depois foi submetida a minucioso tratamento.
 
Vi há algum tempo na Argentina uns outdoors que, com o propósito de proteger o consumidor, traziam também na parte inferior a seguinte legenda: esta imagem foi manipulada digitalmente.  Estava ali estampada a foto de uma moça sorridente com pele, dentes e cabelos impecáveis, mas o anúncio – pasmem! – era de uma agência de viagens. Ignoro se essa é uma regra que deve ser seguida por todos os anunciantes na Argentina (pesquisem e me informem, por favor, que continuo mais propensa à preguiça e ao impressionismo do que à precisão), mas achei muito engraçado, porque deduzi que a legenda estava a advertir o futuro consumidor de passagens ou pacotes turísticos de que ao comprá-los a agência não lhe assegurava beleza e felicidade certas. Era como se dissessem: “compre, mas a gente não garante que você vá se divertir e parecer tão bonito na fita”.
 
E se essa exigência fosse aplicada aos anúncios de todos os produtos e serviços e se introduzissem na legislação normas bastantes exageradas? Imaginem, por exemplo, se ao pé daquele anúncio de creme para o rosto em que aparece uma modelo linda, com a pele perfeita, tivesse que figurar a seguinte informação: “esta modelo foi manipulada por uma meia dose de cabelereiros, maquiadores, fotógrafos e editores de fotografia habilidosos. Assim, o fato de você usar este creme não garante necessariamente que você terá essa pele lisa, bonita e jovem. Você continuará com suas manchas e rugas e nada te impedirá de se tornar um maracujá de gaveta, se você já não é um. Ficará apenas um pouco mais pobre, porque esse creme é caro pra caramba”. 
 
Imaginem também se no final daquele comercial de cerveja fosse necessário informar que “ingerir essa cerveja não garante que você irá pegar mulheres tão gostosas quanto vê nesse comercial e, ao contrário do que mostramos, quando você chegar em casa,  solitário  e bêbado, depois de passar a noite na farra com os amigos, não será recebido por uma baranga com um rolo de macarrão na mão, mas por uma mulher até bonita, que estará tranquila, satisfeita e bem humorada, porque acabou de sair dali o Ricardão”. Igualmente, no comercial do luxuoso modelo: “esse sujeito alto e sarado que acabou de aparecer é um ator e somente comprar um carrão desses não vai te garantir tão bela companhia feminina se você for um baixinho barrigudo. Se quiser uma mulher dessas, você vai ter que gastar pelo menos o dobro do valor do carro. Lamento, mas você vai ter que pagar mais, cara”.
 
Seria excessivamente verdadeiro e, portanto, cruel, eu sei. E a super-sinceridade mata mais do que bala de metralhadora. Por isso é que reitero que um pouquinho de propaganda enganosa é menos mal do que bem. Se os comercias não mentissem, não conquistariam os consumidores de tantos produtos. Não é nenhuma novidade pra ninguém que a publicidade vende menos a coisa do que as emoções a ela associadas: sensação de saúde, de sucesso, de liberdade. Tirar a ilusão dos comerciais seria eliminar grande parte da ilusão que dá sentido à vida de muitas pessoas. “Quando eu comprar aquela roupa, aquele carro, aquela cobertura, eu terei aquele homem ou aquela mulher, eu serei considerado bem-sucedido, admirado e finalmente serei feliz. Sim, quando eu tiver, eu enfim serei”.
 
Se sou favorável a uma publicidade mais sincera? Claro. Protesto contra o excesso de verdade, mas também me manifesto a favor de que as pessoas sejam protegidas das desonestidades, dos excessos e da grande ilusão de que o consumo deste ou daquele bem trará a felicidade. Tenho, porém, a impressão de que a arte nos defende mais dessas armadilhas do que qualquer onda no Facebook ou Código de Defesa do Consumidor, a arte que nos aguça a sensibilidade e nos ensina a perceber os valores implícitos e as intenções subjacentes aos comerciais. A arte, aliás, que nos dá um tapa na cara e que, embora seja capaz também de nos iludir e fazer sonhar,  nos permite enxergar as verdades e os importantes valores da vida.
 
Quanto a essa nossa propaganda enganosa do cotidiano, parecem mais inofensivas as mentiras que as pessoas contam a respeito da própria aparência, por meio de artifícios como maquiagem e recursos de edição fotográfica do que aquelas que contam a respeito de suas emoções, fingindo, por meio de caras, bocas e legendas, que se encaixam perfeitamente no padrão de sucesso e felicidade que se vende por aí.  Assim, proponho que, em vez de a gente simplesmente se apresentar de cara lavada, que a gente use o nosso batonzinho do dia a dia, e se cuide e tente se embelezar também por dentro, para se proteger das mentiras deslavadas que se contam por todo lado.
 

Comentários

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  • 12.10.2014 10:21 Cássia Fernandes

    Tem razão, Msamsa. A mentira é essencial à ficção e a ficção pode ser justamente à alternativa aos malefícios do vício da mentira. :)

  • 22.09.2014 16:39 Msamsa

    Esse tipo de onda, de modo geral, mostra o quanto inconsistente andam as ideias das pessoas. Bem que poderia ser mais simples: se quer usar maquiagem, use, não quer usar, não use. Mas muitos realmente se sentem pressionados pelo mercado consumidor. Concordo com você, é preciso cuidar e embelezar por dentro, para aprimorar o livre pensamento e as próprias opiniões. Quanto a mentira, ela não é tão ruim assim, como muitos pensam. Dizem que sem a capacidade de mentir/dissimular, não seria possível escrever uma ficção, ou seja, não existiria a escritora Cássia Fernandes, o que seria lamentável.

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