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Cejana  Di Guimarães
Cejana Di Guimarães

Jornalista formada pela UFRJ e pela Universidade de Fribourg, Suíça. Vive há 20 anos em Zurique. / cejanadiguimaraes@gmail.com

Cartas do exílio

Maldito silêncio

Violência contra a mulher ainda nos desafia | 05.12.14 - 10:56

Goiânia - Calar. Fazer de conta que não aconteceu nada. Todos nós mulheres somos educadas para isso, sofrer caladas. Desde as marias-chiquinhas apertadas, as roupas incômodas, os sapatos que apertam, depois, as depilações, os sutiãs os saltos, as maquiagens, os cabelos esticados, pintados, sombrancelhas tiradas. Tudo pela busca da perfeição inexistente, pela santidade idealizada, é preciso ser boa menina, boa moça, ajuizada, esposa fiel, mãe dedicadas à imagem da Virgem-Maria-Santíssima. E os homens?
 
Aos homens é permitido andar descalço, brincar de luta, rolar no chão, jogar pelada, pular muro, cuspir no chão, fazer xixi na rua, gostar de armas, de jogos de luta, guerra, sacanagem, eles não precisam ser ajuizados, bons moços, rapazes sérios, esposos fiéis, nem pais que se sacrificam à imagem de Jesus-que-morreu-na-cruz-para-nos-salvar. Eles podem ser normais, ter defeitos, errarem, desde que cumpram seus papéis de defensores da pátria e acumuladores de riqueza.
 
O homem é da rua, a mulher é da casa, o homem é preparado para a guerra, a mulher para curar, o homem aprende a matar, a mulher a cuidar, alimentar. Ainda vivemos essa dicotomia, apesar de imagens diferentes serem atualmente espalhadas pela mídia em filmes, novelas, seriados, jogos. Superficialmente a sociedade se apresenta como moderna e emancipada, mas profundamente, continua reproduzindo modelos de cultura cristã baseados em sentimento de culpa, castração da mulher e na idealização do homem como instrumento de guerra. Mesmo se Cristo falou em oferecer a outra face, a sociedade e as religiões, como estruturas de poder, continuam privilegiando e enriquecendo os guerreiros, que não choram. 
 
O homem é treinado para não sentir. A mulher é treinada para calar. Dois tipos de violência, que têm a mesma origem. O medo. O medo da proximidade, o medo da fragilidade, da vulnerabilidade. Medo daquilo que temos de mais autêntico e precioso, do que nos move, nos faz criar e mudar, nossa humana precariedade. É da fragilidade que surge a renovação, da aceitação das nossas fraquezas, defeitos, imperfeições. O poder é estéril, ele apenas se auto-reproduz ad infinitum, concentrado na própria força e no seu poder destrutivo. 
 
Da mulher se exige a perfeição da pureza, da inocência, da dedicação. Do homem se exige a perfeição pela força, coragem, dominação. E o que acontece é um desencontro. 
 
A violência contra a mulher, que seja dentro de casa ou fora de casa, continua nos desafiando, nos assustando. Sem querer estabelecer culpados e vítimas e distribuir castigos ou penas de morte e enclausuramento, acredito que a responsabilidade é de toda a sociedade. É da mãe que fala para filha se comportar na frente de estranhos, ficar „quietinha“, é da irmã, da tia, da avó que ensina a cruzar as pernas, ter modos, ser discreta, „buscar um copo de água pro seu tio“, „esquentar a comida pro seu irmão“. É da vizinha, da prima, da amiga, que ensina a calar envergonhada os abusos de parentes, professores, conhecidos e não gritar quando o pedreiro da obra vizinha resolve abrir o zíper da calça e exibir o que não deveria.
 
A responsabilidade é de toda a sociedade que faz a mulher calar e incentiva assim a transgressão e a violência masculina. O homem passa a ser vítima da própria violência, por não poder se assumir inteiramente, se permitir uma fragilidade libertadora. Por se transformar em um reprodutor de agressões, muitas das quais tenha talvez também sofrido na infância e adolescência, pelas mãos de outros homens ou mulheres pois afinal é proibido sentir, é preciso ser „durão“, o rei do pedaço. Quem reproduz as agressões não são só os homens, é toda uma sociedade. São as mulheres pelos seus silêncios envergonhados, são os homens por aceitarem o papel de agressores e se submeterem à lógica do mais forte. 
 

 
Por isso fiquei muito feliz essa semana ao ver algumas mulheres ainda jovens quebrarem o pacto do silêncio e falarem de violências e estupros que sofreram no livro a ser lançado  "Nós Mulheres do Silêncio" de Narelly Batista.
 
"O impacto da surra foi tamanho que Cristina não sentiu o primeiro tapa, franziu a testa e se reservou a indagar, com expressões e murmúrios, o que foi que ela tinha feito. Então, Cristina apanhou mais uma vez. Dessa vez com socos e pontapés na cabeça. O sangue começou a escorrer por seu rosto. As orelhas de Cristina estavam vermelhas de tantos tapas e socos que tinha levado. O nariz ensanguentado sujava o chão do quarto.‘Pelo amor de Deus, para com isso‘, suplicava Cristina. Não adiantava. Ele parecia cego de ódio. Enquanto isso, no quarto ao lado, as meninas estavam deitadas na cama esperando o sono vir. Tinham a regra de deitar-se na hora estipulada pelo pai e depois disso só podiam se levantar quando o sol aparecesse. Ouvindo os berros da mãe, Daiany se levantou da cama. A menininha que tinha apenas sete anos ouviu os passos do pai que parecia ir para a sala e se encheu de coragem. Sabia que era na sala que ele guardava sua arma."
 
E para terminar, talvez as palavras de Luiza Pillar, que participou do projeto com outro forte depoimento, possam nos inspirar.
 
"Que o amor seja a pergunta e a resposta. 
Que a compreensão e o respeito se façam presentes, mesmo nos dias cinzas. 
Que a gente aprenda a se colocar no lugar do outro, antes de julgá-lo. 
Que a gente entenda, que atirar pedras nunca resolve nada. 
Que a gente aprenda a ver beleza e oferecer flores. 
Que a luz chegue pra todos!..."

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