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Jales Naves Júnior

A fórmula política da Cleópatra moderna

| 16.09.22 - 09:55  
Cleópatra foi a última Rainha do Egito Antigo, ascendendo ao trono após a morte de seu pai. Governou brevemente em conjunto com seu irmão e marido Ptolomeu XIII que, invejando a Rainha por angariar mais popularidade e prestígio do que ele próprio, iniciou guerra civil para tomar o poder exclusivamente para si. Em seus esforços iniciais ele conseguiu forçar Cleópatra a fugir para a Síria que, à época, era uma província da República Romana. Em Damasco a Rainha contatou e convenceu Júlio César, então cônsul de Roma, a se envolver no combate ao seu lado. Ao somarem forças, ambos finalmente venceram as tropas de Ptolomeu XIII e restauraram Cleópatra ao poder.

Ao caminhar pelo Egito Júlio César atestou ter ficado perplexo com o pavor causado por tal guerra na população local. Em particular por uma questão: mais preocupados do que com os horrores naturalmente decorrentes de qualquer conflito bélico, os egípcios se afligiam pela possibilidade de os reis morrerem em batalha pois, de acordo com a sua mitologia, o Sol não brilharia no outro dia caso o Egito não estivesse sob a tutela de um faraó.

Nós, contemporâneos, não acreditamos estar em um “tempo e lugar” específico e nos vemos sempre como se posicionados à parte e fora de qualquer processo histórico. Desta forma, olhamos para esse passado como uma era de superstições imbecis e ridicularizamos o egípcio por acreditar numa crendice tão pueril quanto o nascer do Sol depender da existência de um Deus-Rei. Como nos damos o narcisista luxo de lançar julgamento sobre nossos antecessores como trogloditas incultos, nos esquecemos de meditar sobre como aqueles do futuro nos observarão. Por conta desta miopia e presunção somos vítimas dóceis da mesma armadilha que aprisionou o Egito de outrora, embora agora ela se apresente em outro formato.

O cientista político italiano Gaetano Mosca cunhou em 1939 o conceito de “fórmula política”, aquelas ideologias propagandeadas pela classe política para justificar o seu manejo do poder e seu lugar no topo. Se no Egito antigo a fórmula era que a ausência do faraó traria escuridão eterna, hoje temos como mito legitimador a “democracia”, esta infantilizante ideia de que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente” e de que todas nossas decisões devem ser outorgadas à elite estatal para que delibere por nós.

Democracia é o que se chama em linguística de um “conceito equívoco” e “polissêmico”, e isto em última análise quer dizer que democracia significa tudo e nada ao mesmo tempo. A palavra, apesar de surrada diariamente por excesso de uso, está tatuada em nossas mentes como algo naturalmente positivo. Aquilo que é democrático é necessariamente bom, mesmo que seja impossível determinar o que a “democratização” de algo implique no mundo real e do que um “defensor da democracia” está querendo nos proteger. Pior ainda, nossa reação instintiva é a de que algo “antidemocrático” seja ditatorial ou autoritário, mesmo que a verdade esteja a léguas de distância disso.

A percepção pública positiva ao redor do termo é algo extremamente recente na história humana. Lendo os teóricos políticos anteriores às nossas gerações não encontramos um único filósofo que imagine ser a democracia o melhor sistema possível. Todos a entendiam ou como uma forma de “oclocracia” (situação crítica em que as instituições estão à mercê de uma multidão violenta) ou como algum tipo de comunismo despojador. Para os gregos, a democracia era a degeneração da politeia, sendo esta (a politeia) um autogoverno virtuoso dos cidadãos. A democracia sempre foi percebida não como um sistema, mas como uma espécie de energia política cuja manifestação era negativa: circunstâncias de tumulto onde uma turba, instigada por uma liderança peçonhenta, mirava sua violência em estilo manada. O mais comum exemplo seriam linchamentos públicos de inocentes falsamente acusados e as famosas caças às bruxas. Assim como Sócrates foi democraticamente forçado a se matar tomando cicuta, a crucificação de Jesus também foi uma expressão democrática.

Novamente, democracia não se encaixa em um sistema binário onde podemos automaticamente definir aquilo que lhe é oposto como sendo autoritário, sendo ingênuo imaginar que a sua antítese é a ditadura, já que o termo foi exaustivamente abusado nos contextos totalitários do século XX. Hitler e Marx diziam lutar pela democracia. Stálin e Pol Pot foram democraticamente eleitos e se baseavam nisso para punir seus dissidentes. Assim como é ridículo imaginar que a vontade da maioria legitimaria enviar um judeu a uma câmara de gás, aceitamos no Brasil a premissa de que aqueles derrotados em uma eleição devam se submeter passivamente aos ditames da maioria eleitoralmente vitoriosa, com o consequente governo de turno infringindo as mais basilares liberdades individuais. É o caso de dois lobos e uma ovelha escolhendo qual dos três irão jantar.

Para a mente moderna, a ideia de que algo possa ser deliberado como resultado de uma escolha individual e responsável é absolutamente repugnante. Ela imagina que a validade de uma decisão está condicionada ao envolvimento do maior número possível de pessoas, daí a tendência para a formação de organizações, comitês, assembleias e burocracias. Assim sendo, a democracia no Brasil nos força a terceirizar aquilo que nunca delegaríamos a terceiros, imaginando que o Estado poderia cuidar melhor do indivíduo do que ele próprio em quesitos como a famosa tríade “saúde, segurança e educação”. Ela nos obriga a transferir escolhas de extrema relevância a pessoas a quem sequer confiaríamos a vigia de nossos pertences por cinco minutos.

Um dos maiores reveses da democracia é que sempre que há algum desacordo, e estes sempre vão existir num país de dimensões continentais com mais de duzentos milhões de habitantes, há a possibilidade de se capitalizar politicamente em torno dele. Sempre que há um debate ou uma questão que nos divide, é apresentado o Estado como solução unívoca. Como sempre se está nesta dinâmica constante onde há poder livremente flutuando, preocupa-se mais em assegurá-lo do que resolver a adversidade. Assim, qualquer problema deixa de ser algo a ser solucionado e se torna uma oportunidade para capturar poder político. Como a própria existência destas imperfeições retroalimenta o sistema, plataformas políticas inteiras ruiriam da noite para o dia fossem os indivíduos autorizados a resolvê-los por conta própria. A democracia então é apenas performática, um fim em si mesmo.

A democracia é a fórmula política de nosso tempo porque a sociedade a utiliza como desculpa para transferir ao Estado aquilo que deveria ser de nossa escolha individual. E os políticos a utilizam para drenar os cidadãos de livre-iniciativa. Se Norberto Bobbio disse que “os problemas da democracia se resolvem com mais democracia” eu fico com Friedrich Hayek quando intui que a antítese da democracia é a soberania do indivíduo e o livre-mercado.

*Jales Naves Júnior é advogado.
 


Comentários

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  • 22.09.2022 18:25 Isabela

    Sensacional, como todos os textos do autor. Sempre fazendo uma referência histórica para uma realidade dos dias de hoje!

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