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Regina Helena de Paiva Ramos

Caiçaras: a distância acabou com a cultura

| 27.06.25 - 16:40
O que ocorreu com a população que vive no litoral do Estado de São Paulo, população designada “caiçara”, do início da colonização para cá? O que ocorreu foi o isolamento. E o esquecimento. Em alguns locais houve até tentativas de urbanização, embora precárias, e de envolvimento da população pela fé religiosa. Tudo fracassou. 
 
Na praia de Barra do Una, São Sebastião, a curiosidade do industrial Oscar Munhoz, levou-o a pesquisar documentos de 1785 existentes na Ordem do Carmo, em Belo Horizonte, sobre a existência de um convento à beira do rio Una. Apenas velhos moradores – hoje falecidos – tinham visto o convento e relataram como ele era à desenhista levada pelo industrial. O convento desabara e, sobre suas velhas pedras, tinha sido erguida uma capela. Há uma descrição do convento, cujo desenho é única referência ao edifício existente: “Tinha um só corpo, tendo a porta da frente voltada para o rio Una, pequeno muro o separava do cemitério. Uma varanda lateral e telhado coberto por telhas de canal Sino da capela na parte posterior do prédio.” 
 
Sobre a forma de comunicação e comércio com Santos contam os velhos caiçaras: ia-se de canoa de voga, com vários remadores que levavam a Santos seus produtos – peixe, bananas, mandioca, farinha de mandioca, milho e arroz. Voltavam com querosene e velas. 
 
A partir dos anos 60, começaram a chegar a essas praias – Barra do Una, Boracéia, Juquehy, Sahy, Baleia, Camburi, Maresias, Toque Toque –, os primeiros turistas, que enfrentavam o caminho pelas praias, atravessando rios sem pontes. Aventureiros, entre os quais alguns médicos, que passaram a tratar a população, antes zelada apenas por “curandeiras”, que benziam, “tiravam” doenças, ministravam remédios caseiros e aparavam crianças. 
 
A comunicação com a sede do município – São Sebastião – era igualmente penosa. Utilizavam as canoas de voga ou iam a pé, em caminhada de um dia. E costumavam, ainda, transpor a Serra do Mar até Salesópolis, no Vale do Paraíba. Não eram raros os namoros de moças de Salesópolis e pescadores do litoral. 
 
Nos anos 70, fui a motorista que levou uma moça grávida com vários dedos de dilatação ao Hospital de São Sebastião, em um fusca verde. A parturiente era segurada pelo marido no banco de trás, enquanto o fusca enfrentava a estrada de terra cheia de pedregulhos e buracos. Num buraco maior, houve o desenlace: a criança gritando, a placenta derramando, o pai rezando um pai-nosso gritado e eu, desesperada. 
 
Tão longe – 53 km de Juquehy ao centro – tão ruim a estrada, tão desprotegida a população que se estabeleceu em toda a região uma forma de falar que os prefeitos que se sucedem tentam – sem conseguir! – eliminar. “Vou a São Sebastião”, dizemos todos, caiçaras ou não. “Vocês já estão em São Sebastião”, dizem, zangados, os prefeitos. “Aqui é o município”! Mas não há jeito. O “ir a São Sebastião” se estabeleceu como verdade.  
 
A estrada Rio-Santos chegou nos anos 80 trazendo o progresso, mas inaugurando uma nova era: a do esmagamento da cultura local. Danças, folguedos folclóricos, procissão e levantamento de mastros de santos, artesanato, lendas, histórias, remédios, costumes, rezas e a deliciosa gastronomia caiçara – da qual o “azul marinho” é o principal representante – foram sendo esquecidos. 
 
A Rio-Santos fez isso. Nos seus primórdios, inundando a região de nordestinos que vieram com as famílias, costumes, gastronomia, hábitos e sotaque. Depois vieram os turistas. O litoral de São Sebastião paga o preço de estar perto de São Paulo e a poucos quilômetros do Vale do Paraíba, com cidades que progrediram muito em população e cultura. Essa gente toda inundou as praias paradisíacas e veio com seus estrogonofes, macarronada da mama, bacalhau, sushis, quibes, coalhada seca, camarões a grega e até peixe do rio Tocantins.  
 
Resultado: etnias se cruzam, comidas desaparecem, a linguagem caiçara substituída (que tristeza!). As mocinhas já falam como as artistas da Globo e, em vez do “azul marinho”, nos servem “boeuf bourguignon” 
 
“Arrelá, que desacorço de não ber mais o palavreado dos tempos de minha abó”, diz a caiçara velha sentada na porta da casa. 
 
*Regina Helena de Paiva Ramos é jornalista e autora do livro "Vento Endiabrado”, um romance que homangeia a cultura caiçara e retrata as feridas da costa brasileira. 

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