Carolina Pessoni
Goiânia - Montada em uma bicicleta com uma cestinha que levava um cachorro cor-de-rosa, uma figura colorida animava as ruas do centro de Goiânia entre os anos de 1960 e 1990. Trata-se de Mauricinho Hippie. O personagem foi um ícone da cidade com suas roupas extravagantes e performances artísticas, atraindo as atenções por onde passava.
Mas antes de ser Mauricinho Hippie, hoje com 83 anos e mais reservado, ele era Maurício Vicente de Oliveira. Nascido em Araguari (Minas Gerais), se mudou para Goiânia com a família aos 9 anos de idade. Influenciado pela família, enveredou-se pelo caminho das artes e acabou criando o seu próprio movimento na capital de Goiás, nos improváveis e conservadores anos de 1960.
Dos 12 aos 18 anos, Maurício estudou acordeom na Academia Mascarenhas, uma famosa escola de música da época. Estudou também teoria e solfejo, no antigo Conservatório da Universidade Federal de Goiás (UFG), e o primeiro ano do curso livre de artes, na Escola de Belas Artes.
Foto de Maurício em sua formatura de acordeon. Acima, uma dedicatória aos pais, onde se lê: "Aos meus queridos pais Dilermando e Ondina para quando olhar recordar o dia tão inesquecível de minha formatura. Go 07/11/59. Maurício V. de Oliveira" (Foto: Reprodução/Acervo MAG)
Com todos esses estudos, tocava piano, acordeon, órgão e violão. Fazia também poesias, pinturas e desenhos. Apesar de todo conhecimento musical e literário, compôs poucas melodias. Já suas poesias estão reunidas em um livro, intitulado "As Bruxas", lançado no final da década de 1980.
A história do personagem que alegrou e coloriu Goiânia começou em 1965, a partir de um fato que poderia ser considerado trágico. Apesar do apoio da mãe, seu pai não aceitava as manifestações artísticas de Maurício.
Insatisfeito com essas escolhas, seu pai pegou poemas, partituras, telas, desenhos, letras de músicas do filho e queimou tudo em uma fogueira. Ao mesmo tempo, Maurício pegou suas roupas convencionais e queimou numa fogueira ao lado da feita pelo pai.
A história foi confirmada por Mauricinho em uma entrevista ao jornalista e produtor cultural Carlos Brandão, em 2011. "A partir daquele ato de queimar minhas roupas normais, eu passei a fabricar as roupas que vestia", disse à época.
Mauricinho Hippie em sua famosa bicicleta que usava para passear pelas ruas de Goiânia (Foto: Reprodução/Acervo MAG)
Com seus figurinos extravagantes, logo Mauricinho Hippie se tornou uma figura reconhecida pela população. De cima de sua bicicleta e sempre com flores que carregava e distribuía para as pessoas, causava frisson por onde passava.
"O que ele fazia não era para um palco, para se apresentar como um personagem. O palco dele era a rua, a cidade. O público era por onde ele ia passando, esfuziante, alegre, fazendo toda essa festa", conta o diretor do Museu de Arte de Goiânia (MAG), Antônio da Mata, que é curador de uma exposição virtual sobre Mauricinho Hippie.
Essa, inclusive, foi a primeira impressão de Antônio da Mata sobre Mauricinho, quando o conheceu em uma exposição de arte. "Estava no evento quando, de repente, chega uma pessoa com um vestido imenso, estampado de vermelho, um arranjo de Carmen Miranda na cabeça e um buquê de rosas. Quando perguntei quem era, me apresentaram como Mauricinho Hippie. Depois soube que ele sempre andava de bicicleta, carregando um cachorro colorido na cesta e onde ele passava era uma festa para todo mundo. Tive curiosidade de saber quem era essa pessoa ", lembra o diretor.
Shows musicais, performances, discursos em defesa do meio ambiente e dos direitos dos homossexuais faziam parte da rotina de Mauricinho pelas ruas da região central de Goiânia. Seu envolvimento com as artes ajudou na criação da Feira Hippie, hoje a mais tradicional da capital e uma das maiores feiras abertas da América Latina.
(Foto: Reprodução/Acervo MAG)
"A gente expunha as mercadorias, somente artesanato e artes plásticas, no Parque Mutirama. Foi lá que começou a Feira Hippie. Eram cerca de 20 a 30 pessoas. Depois a feira se mudou para a Praça Cívica e, em seguida, para a Avenida Goiás. Eu fui até a fase da Avenida Goiás. Depois parei, quando a feira deixou de ser hippie", contou Mauricinho em sua entrevista a Carlos Brandão.
Maurício estava por todo lugar da cidade, em movimentos e eventos artísticos de diversas vertentes. Até que em 1995 sofreu um acidente na Avenida Goiás, no Centro, e perdeu um pé. A partir de então, mesmo com uma prótese, passou a ficar em casa e pouco sai.
Já idoso, Mauricinho já não mora mais na sua casa no Setor Aeroporto, mas vive com familiares ainda na região central de Goiânia, na Avenida Tocantins. "Ele continua brilhando pelo que fez e representa, mas hoje vive totalmente recolhido, reservado", diz Antônio da Mata.
Mauricinho Hippie em entrevista à TV UFG, em 2017 (Foto: Reprodução/YouTube)
A última aparição pública de que se tem notícia de Maurício foi no último dia 23 de setembro, na abertura da exposição “Mauricinho Hippie – Entre arte e vida, ser ou não ser”, em frente ao MAG, no Bosque dos Buritis. "Foi um dia emocionante. O corredor ficou cheio de gente e quando ele chegou, foi ovacionado com muitas palmas. Várias pessoas contando histórias cheias de humor, amor e verdade. Ele ficou muito emocionado", conta o diretor do museu.
Para Antônio da Mata, a figura de Mauricinho é de extrema importância para Goiânia. "Uma personalidade tão folclórica, tão importante para a cidade. Fez tudo com muita irreverência e tranquilidade e foi muito bem quisto e bem visto por todos", emociona-se.
Exposição
A exposição "Mauricinho Hippie – Entre arte e vida, ser ou não ser" é promovida pelo Museu de Arte de Goiânia (MAG), com o apoio da Secretaria Municipal de Cultura de Goiânia. A exposição é virtual e pode ser acessada até 31 de dezembro pelo
link.
O acervo da exposição foi montado a partir de fotos, objetos, murais e colagens feitas pelo próprio Maurício e que seriam descartados. "Em 2018 resolvi procurar onde ele morava e descobri que a casa ficava no Setor Aeroporto. Quando cheguei, a casa estava sendo desmontada, pois passaria a ser alugada, e algumas coisas seriam jogadas no lixo. Perguntei se eu poderia levar, juntei tudo e levei para o museu", conta Antônio da Mata.
(Foto: Reprodução/Acervo MAG)
Em 2023, surgiu a ideia de transformar o material em uma exposição a partir da ação anual Primavera dos Museus, promovida pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), que tem como tema neste ano Memórias e democracia: pessoas LGBT+, quilombolas e indígenas. A partir dos mosaicos e painéis, foram feitas restaurações e ampliações para expor o material.
"Foi um trabalho de uma grande equipe e muitos apoiadores para mostrarmos quem foi essa figura. No dia do lançamento, que fizemos de maneira presencial, foi emocionante. Tive a felicidade de encontrar essa pessoa e poder homenageá-la, exaltando sua importância para Goiânia", encerra da Mata.