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instigante artigo publicado nesta segunda-feira, dia 27/11/2023, em O Globo, Demétrio Magnoli sugere que o movimento ambientalista teria entrado em um beco sem saída de isolamento e negação da via político-democrática.
Para ele, a imagem de Greta Thunberg discursando, três semanas atrás, em defesa da causa palestina, durante um evento sobre clima, sintetiza a opção dos ativistas da ecologia por um "principismo inconciliável". Na ocasião, a ativista sueca condenou, de forma unilateral, a ação militar israelense, sem criticar o terrorismo atroz do Hamas.
Segue Magnoli: "A criança teimosa reordenou a sintaxe do movimento ambiental num sentido regressivo". Depois de amadurecer ao longo dos anos 1980 e 1990, processo que incluiu a criação de partidos verdes e a busca da política institucionalizada, o ambientalismo teria dado passos atrás e privilegiado o retorno a uma postura infantil e utopista, que não aceita as necessárias concessões e os avanços incrementais da via democrática.
O ambientalismo, enquanto ideologia política, estaria de fato fazendo opção por uma radicalização que o afasta da política democrática?
A Ecologia Política sempre foi, na verdade, ampla e diversa, com grupos e pessoas se posicionando em um espectro que vai desde esse principismo que não vê possibilidade de conciliações até o pragmatismo da política partidária e parlamentar, com atores de todas as origens e caras - de empresários defensores de uma gradual transição ecológica a anarquistas verdes que pregam táticas de guerrilha.
Nesse caldo, há muitas instituições que inclusive operam em frentes aparentemente contraditórias do espectro. O Greenpeace, por exemplo, adota, com frequência, performances radicais no limite da lei para chamar a atenção para suas causas. Ao mesmo tempo, entretanto, financia pesquisa científica e se senta à mesa com parlamentares e governantes para negociar. Será mesmo justa a acusação de Demétrio?
Cabe darmos mais um passo atrás e nos colocarmos ainda outra pergunta: o principismo radical não deveria ter lugar à mesa do debate democrático?
O processo democrático, afinal, não se dá apenas a partir de conciliações e concessões. Ele é dialético e performático, isto é, depende de que os atores, em alguma medida, estiquem a corda e radicalizem por vezes suas posições, ameaçando rupturas, para então obter concessões de lado a lado. É um eterno jogo de afastamentos e aproximações que envolve um teatro de sinalizações, não raro contraditórias, numa partida de xadrez em que se tenta fazer o outro lado piscar primeiro.
Nesse sentido, em muitos momentos da história, para que reivindicações importantes ganhassem lugar na política foram necessários gestos radicais. Penso na desobediência civil de uma Rosa Parks, ocupando o assento reservado a brancos no ônibus, ou em Nelson Mandela, buscando a conciliação com os brancos para fechar a porta à guerra civil na África do Sul pós-apartheid, quando muitos a seu lado clamavam por retaliação e vingança. Para voltarmos ao Brasil, vem à mente o célebre discurso de Aílton Krenak durante a Constituinte.
Nos Estados Unidos, a luta pelos direitos civis dos negros não avançaria sem a desobediência e o medo que ela despertou na parcela branca e conservadora da sociedade. Na África do Sul, depois de quase 50 anos da brutalidade do Apartheid, como fazer a maioria negra compreender que não havia caminho possível para o país fora de uma tentativa de reconciliação?
Na Constituinte, em 1987, por sua vez, o cenário não se desenhava positivo para os povos indígenas. O discurso de Krenak, pintando o próprio rosto enquanto denunciava a articulação de interesses para avançar sobre as terras indígenas e propostas de cidadania para esses povos, alterou de forma radical o curso das negociações e resultou nos capítulos da Constituição que a tornaram uma das mais modernas em relação a esses direitos. Sentar-se à mesa de negociação, nesses três casos, sem antes reconfigurar o terreno do possível, através desses gestos, não teria trazido os resultados desejados.
Ainda assim, é fundamental não perdermos de vista que esse dilema entre princípios e pragmatismo é basilar do processo político. Quem se rende ao pragmatismo absoluto perde sua própria humanidade. Quando nos aferramos radicalmente a princípios, removendo da equação os resultados possíveis, elimina-se a própria possibilidade da política e o jogo democrático fica enfraquecido.
É nesse sentido que o ambientalismo deve tomar a crítica de Demétrio Magnoli como motivo de reflexão, e não descartá-la. Em tempos de polarização, o contexto do embate político já se encontra de antemão estreitado. Em vez de um cenário multipolar, onde agem atores de múltiplas perspectivas, toda a política se reduz a um campo bipolar, onde se perdem todas as nuances e as ideias são forçadas a se classificarem de um lado ou outro em permanente antagonismo.
Esse contexto, favorecido de maneira fundamental pela dinâmica das redes sociais, nos empurra, primeiro, cada vez mais, para os extremos desses dois pólos e, em seguida, amalgama ideologias e questões nem sempre afins em um mesmo pacote. Por essa via, se o ambientalismo é uma ideologia identificada com a esquerda no espectro político, automaticamente os que a ele aderem devem se associar a outras causas identificadas com esse campo do espectro. É por isso que vemos Greta Thunberg, com o lenço palestino ao pescoço, defendendo a causa desse povo em um protesto sobre mudanças climáticas.
A pergunta que então se coloca é: faz bem ao ambientalismo misturar-se à causa palestina ou a outras nas quais é impossível fugir à radicalização?
"É uma questão de humanidade", dirão os que não vêem sentido nessa distinção. "Da mesma forma que o ambientalismo se une à causa indígena no Brasil, por que não sair também em defesa dos palestinos?"
Questões muito diferentes, eu diria, e ambas merecedoras de olhares muito mais complexos do que aqueles de que o binarismo político presente é capaz.
Do lado de cá do oceano, vale dizer que essa convergência entre ambientalismo e questão indígena nem sempre foi tão pacífica. Conflitos entre áreas protegidas e comunidades indígenas ou tradicionais permanecem ainda em muitas partes do país, embora o conservacionismo radical de fato hoje se limite a uma franja mais envergonhada dos que trabalham em prol do meio ambiente. Essa aliança agora majoritária foi resultado também de um processo que envolveu embates e que não teria sido possível sem debate democrático e busca de convergência.
O conflito Israel-Palestina, por sua vez, é uma arena tão inflamada e polarizada que se tornaram virtualmente impossíveis posições ponderadas. De fato, esse é, de maneira triste, um exemplo perfeito do que ocorre quando a política é continuamente solapada - e nesse processo, desde Oslo, todos os atores têm sua culpa no fracasso. Agora, já ninguém, nem Hamas, nem a extrema-direita no poder em Israel, acreditam na possibilidade do diálogo e na solução de dois estados.
Por isso, aqui ou em qualquer lugar, quando a direita defende o que Israel faz, sem reconhecer que suas forças armadas estão cometendo crimes de guerra todos os dias, fomenta, no fundo, o extermínio do povo palestino. Do outro lado, quando a esquerda se nega a condenar o Hamas, que nunca quis a paz, acaba sim por assumir posições antissemitas. Ambos os lados, mesmo quando não o verbalizam, só veem solução em uma guerra que resulte na derrota final do outro, com todo o seu preço. A política, nessa arena, morreu por culpa dos dois lados.
Há mais uma camada, entretanto, nos dilemas do ambientalismo, que Demétrio Magnoli não aborda, mas que merece ser escavada - ainda que não para trazer respostas, e sim para complicar mais o cenário.
Nossos tempos são os de uma crise generalizada porque ela afeta as próprias bases da visão de mundo que possibilitou todos os avanços da modernidade - com os efeitos colaterais agora cobrando seu preço. O mundo é muito mais rico que há dois séculos, mas ficou mais desigual. A tecnologia trouxe benefícios inimagináveis, mas colocou em risco o próprio planeta. Entramos em uma era em que a mão humana passou a afetar diretamente a dinâmica planetária, levando os cientistas a falarem no início do Período Antropoceno, em sucessão ao Holoceno que se iniciou há 11 mil anos com o fim da última glaciação.
Nossa crise é política e também epistemológica, no sentido de que estão em cheque hoje, sobretudo, as formas pelas quais produzimos conhecimento. Não se trata apenas de uma crise da democracia. Vivemos também uma crise da Ciência - e quem a iniciou e foi, de certa forma, a mensageira do caos, é justamente a Ecologia Política.
Como explica o filósofo da ciência Bruno Latour, falecido no ano passado, "os movimentos 'verdes', querendo restituir à natureza uma dimensão política, tocaram no coração do que chamamos de Constituição Moderna".
Nossa visão de mundo, isso que podemos igualar ao que Latour chama de "Constituição Moderna", enxerga a realidade dividida em duas câmaras separadas e incomunicáveis: natureza e sociedade. À primeira, corresponde o mundo dos objetos e dos fatos, à segunda, os humanos.
A situação dos humanos, nesse esquema, assemelha-se à célebre Alegoria da Caverna de Platão. Nela, acorrentados no interior da gruta, eles tomam as sombras que o fogo projeta sobre as paredes como realidade. Cabe ao sábio-cientista arrastá-los para fora da caverna e revelar-lhes a luz dos fatos. Cabe à Ciência, com cê maiúsculo, nesse sentido, desvendar a realidade e mostrá-la aos humanos. Enquanto isso não ocorre, é inevitável a balbúrdia de múltiplas visões e opiniões e os humanos jamais conseguem se entender.
A essa ideia de uma Ciência que faz cessarem as discordâncias, corresponde, por oposição, uma concepção enfraquecida da política, relegada à câmara dos humanos e parte indissociável de sua balbúrdia. A modernidade tornou na verdade inútil a política.
Quando empurraram a natureza para dentro do jogo político, entretanto, os movimentos verdes provocaram paulatinamente um curto-circuito. Afinal, provoca Bruno Latour, se a natureza, tal como a entendemos, foi justamente feita para eviscerar a política, "não se pode pretender conservá-la jogando-a toda no debate público".
Nunca houve, na verdade, uma natureza intocada, como não existe essa política desconectada do conhecimento. Conhecimento e política são duas faces interrelacionadas do processo pelo qual construímos nosso mundo comum. E não se trata aqui de assumir uma ideia de que o conhecimento é uma construção subjetiva e postular que todo e qualquer ponto de vista se equivale. Esse tipo de relativismo absoluto é próprio da modernidade.
Nosso desafio é o de abandonar de vez e por inteiro a Constituição Moderna, com suas rígidas separações e oposições, e buscarmos um "relativismo relativo", para usar novamente uma expressão de Bruno Latour.
Não é tarefa simples. Por outro lado, como ironiza o pensador francês, significa apenas continuarmos fazendo o que sempre fizemos: construir um mundo comum com base em processos que misturam política e conhecimento. Precisamos somente cessar o movimento paralelo pelo qual os componentes desse mundo - híbridos de origem - são "purificados" e separados como pertencendo a uma das câmaras: sujeitos ou objetos, discursos ou fatos, sociedade ou natureza, política ou ciência.
Nesse sentido, enquanto o ambientalismo continuar aprofundando sua crítica à política, corre de fato o risco de se tornar um gueto. Ações como as de Greta Thunberg ou as infantilidades de ativistas que têm vandalizado obras de arte pelo mundo afora apenas aprofundam a polarização e minam o debate político. Vimos bem, no Brasil, nos últimos dez anos, para onde nos leva o sentimento antipolítica: ele é a ante-sala do fascismo.
Para nossa sorte, por outro lado, a natureza já não pode perder seu assento à mesa do jogo democrático. Os ambientalistas regredidos não são seus únicos porta-vozes. O movimento indígena - que, aliás, nunca recusou a política - pode bem dizê-lo. Se 13% do território brasileiro se encontram hoje sob sua guarda - que é mais eficiente que a do Estado para assegurar a preservação, como mostram os números -, foi porque eles, que nunca separaram sociedade e natureza, souberam se jogar na política com toda a sua sabedoria.
Demétrio tem sua razão. Que a política possa fluir em seu lado mais luminoso e dar os frutos necessários, a partir desta semana, em Dubai, onde começa a COP 28, a Conferência das Parte da Convenção da ONU sobre Mudanças Climáticas. Precisamos dela.