O Brasil tem uma imensa capacidade de produzir figuras únicas em suas encruzilhadas — pessoas de uma singularidade só possível em um país tão radicalmente diverso e rico em todos os sentidos. São mulheres e homens que, pelo hibridismo proporcionado por contextos que unem extremos ou conciliam contrastes, conseguem construir pontes entre aspectos muitas vezes distantes ou aparentemente inconciliáveis de nossa sociedade e cultura complexas.
Só nosso país poderia produzir um Guimarães Rosa, mineiro do interior e diplomata do mundo; um Luiz Gonzaga, sanfoneiro do sertão que falava com voz universal; uma Marina Silva, seringueira e imensa voz política global; um Gilberto Gil, poeta e político; uma Clarice Lispector, espécie de desterrada de si mesma; um Luiz Antonio Simas, intelectual das ruas e terreiros; um Manoel de Barros, porta-voz das coisas insignificantes e inúteis. São muitas, e de diferentes gerações, mas todas figuras que, de alguma forma, compartilham esse lugar a meio caminho — um ser entre mundos que os (des)define. São mestiços — essa palavra hoje cancelada, mas que talvez nomeie justamente o que temos de melhor. Não vestem uma capa só, não se definem por um rótulo fácil — e seu talento e poder derivam da força que extraem desses curto-circuitos que os constituíram.
Drauzio Varella é outro desses. Tornou-se conhecido como o médico que revelou ao Brasil as muitas faces de sua população carcerária, mas é também professor, pesquisador, talentoso escritor e verdadeiro pensador do país.
João Moreira Salles definiu-o bem como alguém caracterizado por uma intensa biofilia, termo popularizado pelo biólogo
Edward Wilson para descrever a afinidade inata dos seres humanos por outras formas de vida e pela natureza. Biofilia, para Wilson, não é apenas gostar da natureza, mas uma tendência instintiva de buscar conexões com o mundo.
Seja falando dos encarcerados, em Estação Carandiru; das encarceradas, em Prisioneiras; de seu gosto pela corrida, em Correr; ou refletindo sobre a morte, em Por um Fio, Drauzio parece sempre conduzido por uma curiosidade natural e afetuosa pelo outro e pelo mundo — o que produz um olhar e uma escuta sensíveis, sempre fascinados pelas diferenças e pela diversidade, e comovidos com a tragédia humana e as desigualdades.
O resultado é uma escrita generosa com seus interlocutores — tanto personagens quanto leitores — e, por isso, absolutamente despretensiosa.
Não é diferente no recém-lançado
O Sentido das Águas – Histórias do Rio Negro, publicado pela Companhia das Letras. Como pesquisador na área da fitofarmacologia, Drauzio criou e ajuda a coordenar há muitos anos um grande projeto de pesquisa, ensino e extensão na região do Rio Negro, no estado do Amazonas. Essa missão levou-o a percorrer e conhecer profundamente a floresta e seus moradores, nesse que é um dos lugares mais ricos, em termos naturais e humanos, do Brasil.
O Sentido das Águas é um singelo e tocante conjunto de histórias de que Drauzio participou ou que ouviu ao longo de suas viagens. Não há pretensão de reflexão exaustiva, análise profunda ou exposição de teses sobre a Amazônia. São, simplesmente, relatos breves sobre encontros, pessoas e lugares — caboclos, indígenas, garimpeiros, madeireiros, bichos, seres e lugares encantados; pequenas e grandes tragédias, sonhos, desencontros, vida e morte às margens do grande rio e no meio da floresta tropical — tudo mediado por esse olhar humilde e fascinado, que revela a profunda humanidade tanto na luz quanto na sombra dos personagens.
É um alívio bem-vindo, um livro assim, em um mundo exausto com julgamentos antecipados e definitivos, numa realidade onde se exige opinião sobre tudo, e numa esfera pública marcada por moralismos de todos os lados do espectro político. Ler O Sentido das Águas é quase como sentar-se à beira do grande rio — ou, quem sabe, percorrê-lo vagarosamente em um dos barcos que o sobem e descem diariamente — e, para matar o tempo, ouvir causos contados despretensiosamente, em voz baixinha, por alguém na rede ao lado.
No fim das contas, por não pretender julgar nem oferecer explicações, o livro de Drauzio toca fundo as grandes questões amazônicas e brasileiras — a riqueza indígena e seu massacre continuado, a imensa biodiversidade e a insanidade com que a destruímos, a pobreza em meio à natureza exuberante.
Como sempre, para dizer algo, é preciso não pretendê-lo.