Dois livros marcaram profundamente minha infância e, através dela, a forma pela qual olho para o mundo:
O Menino Maluquinho, do Ziraldo, que nos deixou no último sábado, e
O Menino no Espelho, de Fernando Sabino, falecido em 2004.
Suspeito que o sucesso de O Menino Maluquinho se deva à capacidade que Ziraldo teve de sintetizar uma certa visão da infância, que já tinha seu espaço no Brasil e no mundo, mas que ganharia força de fato com os ares de liberdade que o país respirava nos estertores da Ditadura Militar e no início dos anos 1980.
O livro expressa como nenhum outro a ideia de liberdade associada à vida das crianças e à riqueza de seu mundo interior, celebra as diferenças e o comportamento divergente e coloca a criança como uma protagonista da sociedade que merece ser levada a sério.
O Menino no Espelho, lançado em 1982, dois anos depois da obra de Ziraldo, vai na mesma direção. Num diálogo sensível entre menino e adulto fala também da infância como lugar onde todas as nossas referências se estabelecem e moldamos nossa visão de mundo. O menino sempre está no homem, como o homem já estava no menino.
Do livro de Fernando Sabino, que li e reli inúmeras vezes durante a infância e a adolescência, ficou sobretudo a identificação com a capacidade imaginativa do protagonista. Outras crianças então tinham mundos de fantasia tão vivos, ricos e interessantes quanto o meu?
Como disse Carl G. Jung em sua autobiografia: "O que se é (...) só pode ser expresso através de um mito. Este último é mais individual e exprime a vida mais exatamente do que o faz ciência, que trabalha com noções médias, genéricas demais para dar uma ideia justa da riqueza múltipla e subjetiva de uma vida individual".
Ziraldo e Fernando conseguiram, nesse sentido, construir mitos da infância. Falando, no fundo, de suas vivências subjetivas e pessoais, lograram ser universais.
Minhas memórias de infância remetem de fato muito mais a realidades imaginadas do que ao mundo exterior. Claro que há as lembranças de horas prazerosas ou assustadoras bem enraizadas no mundo real - com amigos, com meus pais e irmãos. Todavia, se a emoção é o filtro que ordena e hierarquiza o passado, os momentos que sobressaem com maior intensidade são justamente aqueles que, de algum forma, ecoam essa grande narrativa pessoal - que envolve grandes feitos e aventuras, heroísmos, monstros assustadores, injustiças e vitórias, montanhas, florestas, desertos, mares, cavernas, navios, aviões, carros velozes, cavalos, mocinhos, bandidos, viagens especiais e escapadas por um fio, tempestades, meninas encantadoras, paixões, ídolos, futebol, reconhecimento, sucesso, super-heróis, salvar o mundo.
O Menino Maluquinho e O Menino no Espelho me fizeram entender que eu não era o único ao mesmo tempo privilegiado e perturbado por uma imaginação prodigiosa e meio fora de controle.
Tive o privilégio de conviver, em alguma medida, com essas duas figuras gigantes e generosíssimas, Fernando e Ziraldo, através do meu pai, o jornalista Washington Novaes, que foi amigo de ambos.
Encerro, por isso, com histórias singelas dos dois.
Ziraldo, em 1966, foi quem desenhou o túmulo do meu avô, em Vargem Grande do Sul, interior de São Paulo, onde hoje estão enterrados, além do velho Henrique, também Arlinda, minha avó, meu pai e meu tio Paulo. Uma obra pouco conhecida e única do grande artista visual.
Túmulo da Família Novaes, desenhado por Ziraldo, em Vargem Grande do Sul (SP).
Em 1983, Fernando Sabino veio a Goiânia para uma conferência. À noite, meu pai reuniu amigos em casa para um jantar em que o escritor era o convidado principal. Para decepção de todos, entretanto, quem recebeu quase toda a sua atenção fui eu. Passamos a noite trocando charadas e piadas. Dessa noite inesquecível com um dos meus ídolos, guardo essa dedicatória que ele fez para meu irmão João e para mim em um exemplar de O Menino no Espelho.
Dedicatória do Fernando Sabino, em O Menino no Espelho, ao João,
meu irmão, que dormia àquela hora, e a mim, que consegui permanecer acordado.