Recebo o
novo livro de Salman Rushdie como quem recebe uma carta há muito aguardada com a confirmação de uma má notícia. Não há nada de novo, de certa forma, nessa carta, mas sua chegada, sobretudo na concretude de um livro de papel e tinta, tem o peso de uma sentença. Adio sua abertura ajudado por um longo dia de trabalho. A capa me encara sugestiva com seu título seco - "Faca"- partido por um corte de onde parece vazar uma sombra.
Em 12 de agosto de 2022, Rushdie sofreu um atentado durante uma conferência no interior do estado de Nova Iorque. Levou dez facadas desferidas por um jovem simpático à Guarda Revolucionária Iraniana. Sobreviveu, apesar da gravidade dos ferimentos e da perda de um olho e movimentos da mão esquerda. Era o fatídico cumprimento, 33 anos depois, da fatwa emitida pelo Aiatolá Khomeini, em 1989, após a publicação de
Os Versos Satânicos, seu romance tomado como símbolo da blasfêmia ocidental contra o islamismo.
Impossível não lembrar das palavras do filósofo britânico John Gray, já citadas aqui
outro dia. Educado no ambiente de absoluta liberdade de pensamento e expressão da Oxford dos anos 1970, ele conta como, durante muito tempo, tomara essa liberdade e a democracia liberal que a assegura como algo dado. Todavia, o tempo lhe mostrara que essa conquistas são apenas um momento fortuito e muito específico da história, e que inúmeras outras boas construções humanas haviam se perdido varridas pelas sombras e pela violência. Não há garantias.
A tentativa de assassinato de Salman, um pouco obscurecida pela tormenta de acontecimentos dos últimos anos - o fascismo mostrando suas garras, os flertes com o autoritarismo, as guerras insanas, as mudanças climáticas - precisa ser vista, por quem quer que realmente entende o sentido de coisas como liberdade de expressão, direitos do indivíduo e democracia, como o derradeiro ato de uma época.
A heroica resistência de Salman Rushdie, durante mais de uma década se escondendo sob proteção da polícia britânica, e o breve lapso da presidência progressista de Mohammad Khatami, que declarou que a fatwa não era mais apoiada pelo Irã, vistos em retrospecto parecem agora apenas o lento cumprimento de uma sentença. Percebendo que a vítima agonizava, as forças do obscurantismo a deixaram respirando por aparelhos apenas para que pudesse testemunhar o lento definhar de seu mundo.
Faca, novo livro de Salman Rushdie (Foto do autor)
A bomba na Amia, em Buenos Aires, o 11 de setembro, a destruição da Estação de Atocha, em Madri, as explosões no metrô londrino, o ataque contra a redação do Charlie Hebdo, o massacre no Bataclan, em Paris.
Para além dos milhares de mortos, feridos e traumatizados, o efeito desejado: a lenta corrosão por dentro de princípios e valores tidos como inabaláveis. É curioso como eventos extremos fazem aflorar a verdadeira face das pessoas. Da mesma forma que, com Bolsonaro, falsos democratas revelaram e seguem exibindo seu desprezo por valores republicanos, desde a edição da fatwa contra Rushdie, também a "Brigada do Mas" - como a apelidou o próprio autor - começou a engrossar suas fileiras no Ocidente.
"Não concordo com o Aiatolá, mas Rushdie foi desrespeitoso com a religião islâmica".
"O 11 de setembro foi uma tragédia horrível, mas os Estados Unidos não podem reclamar".
"O 7 de outubro foi uma carnificina, mas não podemos chamar o Hamas de terrorista".
A cada episódio que renova o desprezo de ditadores pelos valores humanos mais básicos, há sempre democratas pela metade dispostos a relativizar o horror.
Acho que foi o próprio Salman Rushdie quem se referiu à sua condenação pelo regime teocrático iraniano como "o primeiro pássaro", em referência ao sinistro clássico de Alfred Hitchcock em que, aos poucos, a pequena cidade do interior é sitiada e atacada pelas aves.
Quando Felipe nasceu, comprei e dediquei a ele um exemplar de
Haroun e o Mar de Histórias, primeiro trabalho de Rushdie após Os Versos Satânicos, um livro infantil escrito para seu filho Zafar, de quem precisou ficar separado durante parte do período em que viveu escondido. É a história de um contador de histórias que perdeu o dom da narração e de uma cidade em ruínas que esqueceu o próprio nome. Haroun, o filho do contador, precisa então enfrentar grandes aventuras para tentar reencontrar as palavras.
Minha dedicatória em Haroun e o Mar de Histórias para Felipe
A defesa da liberdade de expressão não é uma abstração, não é o cultivo de um ideal vazio em face das iniquidades do mundo. Ela é a defesa do que cada pessoa tem de mais precioso e única possível fonte de algum sentido para a vida: seu rico mundo interior e a possibilidade de expressá-lo sem sofrer retaliações por isso.
Como dizia o saudoso jornalista
Christopher Hitchens: "O totalitário é o inimigo – aquele que é absoluto, aquele que quer controlar o interior da sua cabeça, não apenas as suas ações e os seus impostos".
Ainda que o fracasso seja certo, em todos os sentidos, apesar de tudo, não há como desistir da briga. Salman não desistiu ainda que o maldito Khomeini esteja rindo por último em seu harém cheio de virgens no paraíso.