José Abrão
Goiânia – “O céu sobre o porto tinha a cor de uma televisão sintonizada num canal fora do ar.” Esta é a icônica frase de abertura de
Neuromancer, romance seminal de William Gibson lançado em 1984, que veio a definir por anos o imaginário do que seria o ciberespaço na época em que computadores pessoais, aparelhos celulares e a rede mundial de computadores eram apenas promessas de um futuro distante: coisa de ficção-científica, como armas laser, carros voadores e humanos em Marte. Mas a humanidade estava no
limiar de alguma coisa. Todos podiam sentir.
A mesma sensação pode ser sentida agora. Ouvimos tanto sobre tecnologias revolucionárias, todos os dias, que parecem coisa de outro mundo, mas que supostamente estão ali, na esquina: as possibilidades do 5G; carros autônomos; a Internet das Coisas; proteína sintética; o fim dos combustíveis fósseis; energia 100% renovável; exploração espacial. E, agora, o metaverso.
O Facebook anunciou, no dia 28 de outubro, que agora todo o seu conglomerado de aplicativos se chama Meta e que a rede social quer construir um metaverso em que as pessoas possam interagir via realidade virtual e realidade aumentada. Para a maior parte das pessoas, o anúncio não é apenas uma surpresa, mas também parece estar "falando grego". Que diabos é metaverso?
A utopia
Um dos tropos mais antigos do cyberpunk é o de um ciberespaço totalmente imersivo: uma realidade virtual (VR) em que o indivíduo pode, para todos os efeitos, acessar outro mundo. Este tipo de ciberespaço chegou à cultura popular através de filmes como Tron (1982), a trilogia Matrix (1999) ou ainda, mais recentemente, em Jogador Nº1 (2018). O metaverso, conforme proposto, busca se aproximar o mais perto possível disso, combinando VR com realidade aumentada e a internet, criando um espaço virtual e digital imersivo compartilhado.
A ideia sempre teve entusiastas. “Houve o ideal, talvez muito inocente, de tentar romper com as estruturas da sociedade como são hoje. Um sabor libertário de descentralizar e se afastar do Estado e das instituições. Existe um público potencial, que são os jovens nativos digitais, enorme”, explica o economista e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), Everton Sotto Tibiriçá Rosa.
“A gente pode esperar algo que via em filme. Você ter um óculos VR e poder interagir com vários ambientes digitais dentro ou fora da sua casa, podendo interagir com coisas no meio ambiente, por exemplo”, imagina o produtor de conteúdo Felipe César Alves, um destes entusiastas. “É difícil tentar ver isso agora, porque está muito no começo e as possibilidades são ilimitadas com base na tecnologia blockchain. Você poderá criar espaços de negociação seguras, criptomoedas que interagem diretamente com esses ambientes”.
Professor Everton Rosa (Foto: divulgação)
O que o metaverso de fato será não deve ser tão descentralizado assim. “Eu acho que agora, com a entrada das Big Techs, isso acabou, porque elas precisam fazer parte da estrutura. O que estão propondo agora é um ambiente virtual provavelmente gratuito, no qual você encontra anúncios, produtos e serviços à venda. Aquele ambiente também pode usar uma moeda virtual própria. Ou uma criptomoeda. Ou você pode converter aquela moeda do jogo em criptomoeda ou em dinheiro de verdade”, esclarece Rosa.
Cripto o quê?
O horizonte que se visualiza do metaverso está ligado diretamente a outros "palavrões" desconhecidos pela maior parte das pessoas: criptomoedas, NFTs e
blockchain. Você provavelmente ouviu falar pelo menos na primeira dessas coisas, sendo as moedas mais famosas a Bitcoin e a Ethereum. Pelo menos na teoria, criptomoedas são moedas digitais e são descentralizadas, isto é, não são emitidas ou regularizadas por nenhum governo. Na prática, elas são ativos financeiros, pois são cotadas em dólar e, portanto, extremamente voláteis.
“Como economista, posso dizer que isto não é dinheiro, não é moeda, e sim um ativo financeiro e objeto de especulação. Seus entusiastas acreditam que um dia isso vai se tornar o dinheiro em si, aceito no cotidiano”, resume Everton. “Mas como são frutos de especulação, isso atrai muito interesse, porque se pode ganhar dinheiro com eles. Você usa a referência do seu ativo no que é dinheiro de fato, no caso o dólar”, completa.
Isso, nos últimos anos, tem atraído mais entusiastas e investidores, especialmente com a desvalorização do real e maior volatilidade da bolsa. O especialista em marketing digital, Lucas Vieira, investia na bolsa há 10 anos e recentemente começou a investir nas moedas digitais. “É de uma volatilidade muito alta. Decidi colocar um montante pequeno: US$ 400 que, em duas semanas, virou US$ 1000. Só que duas semanas depois voltou para menos de US$ 400. Eu não queria ficar exposto dessa forma”, conta.
Bitcoin e Ethereum são as criptomoedas mais conhecidas (Foto: reprodução)
Essa é uma história parecida com a do produtor de conteúdo Felipe César Alves. “Mexo com criptomoedas tem cerca de cinco anos. Na época entrei mais como um curioso, após ler uma matéria sobre bitcoin. Não havia muita informação, era mais em fóruns internacionais. Comecei a pesquisar sobre
blockchain, que é a tecnologia por trás, e de lá pra cá ganhei muito dinheiro no mercado e perdi muito dinheiro também”, relata.
Ambos queriam assumir um papel mais ativo no seu investimento e passaram a fazer isso através dos criptojogos: video games em que os participantes podem jogar para obter criptomoedas. “Você está criando uma economia dentro de jogos. A gente ia lá e comprava o jogo e a desenvolvedora ganhava os
royalties por isso. Depois vieram os
free to play, você baixava o jogo de graça, mas tinha ali uma propaganda ou alguma outra forma de monetizar a desenvolvedora.” Felipe encadeia o histórico da monetização dos jogos. “Agora, com os
play to earn, os itens que são garimpados são vendidos entre jogadores. Os NFTs que você precisa para jogar são vendidos e produzidos entre jogadores e a desenvolvedora recebe uma porcentagem de tudo isso”, completa.
NFTs são tokens não fungíveis, um tipo de token criptográfico que representa algo único. “Dependendo do jogo, ele representa um boneco, um carro, um avião, geralmente são os personagens que você controla dentro do jogo e, enquanto você joga, ele está minerando outros NFT, outras moedas dentro do jogo”, explica Lucas.
Isto é possível através da blockchain, uma tecnologia de validação de dados criptografados para garantir a segurança dessas transações envolvendo criptoativos. E, para os aventureiros entusiasmados, há dinheiro a ser feito: tanto Lucas quanto Felipe afirmam conseguir uma renda por mês, em criptojogos, superior aos seus salários, às vezes mais que o dobro.
E essa mesma proposta pode ser facilmente transposta para o metaverso.
A corrida do ouro
O potencial econômico do metaverso é gigantesco: todo um ambiente virtual novo e inexplorado para se anunciar, vender produtos ou mesmo cosméticos para avatares. E também é um mundo novo para os NFTs e a criptoeconomia. “Os primeiros entusiastas do metaverso querem um ambiente virtual nesse espírito inicial de fazer transações descentralizadas através do blockchain”, explica Everton.
“A realidade virtual imersiva, 3D, sempre foi uma utopia. Sempre esteve em filmes e o universo que até agora chegou mais próximo disso foi o dos video games. E muitos já encontraram formas de monetizar através de cosméticos ou propagandas, como League of Legends e Fortnite. As pessoas jogam para se divertir, mas o ambiente do jogo também pode ser para anunciar, vender algum produto ou serviço. Isso é um modelo de negócio normal”, completa.
Felipe Alves investe há anos em criptomoedas (Foto: acervo pessoal)
O que muda com o metaverso não é apenas o interesse de gigantes da tecnologia, como Facebook (agora Meta), Microsoft e Epic e de outras áreas, como a Adidas, mas a propagação de uma criptoeconomia, de fato.
Para o economista Everton, a demanda e o potencial são enormes, tendo como base como a monetização de jogos já funcionam: jogadores gastam grande volume de dinheiro de verdade para comprar roupas, casas e acessórios para seus avatares virtuais. Como será isso quando estes itens se tornarem únicos?
“Hoje quando eu compro um NFT, ele é único, ele é só meu. Dentro do metaverso, além de ser um ambiente digital em que você pode socializar, jogar e negociar, tudo o que está lá dentro pode ser um NFT: pode ser único e ter um dono”, explica Lucas Vieira. “Você provavelmente vai ter um avatar básico, mas de repente um artista oferece uma jaqueta ou ou tênis NFT e coloca à venda pela moeda que ele escolher, inclusive em criptomoeda. Isso vale pra tudo. Você pode construir uma sala digital para receber seus amigos com mobília única. De repente a sala inteira é um NFT, com uma marca única”, completa.
A crise
Atualmente, existem mais de 12 mil criptoativos cadastrados no agregador Coinmarket. Uma moeda muito popular hoje pode simplesmente deixar de existir amanhã. Porém, esta volatilidade parece não intimidar os aventureiros.
“O Brasil é um dos maiores consumidores de cripto no mundo, com comunidades expressivas não apenas no mercado, mas nos criptojogos. Primeiro porque em cripto você ganha em dólar que está muito valorizado no Brasil. Isso é um dos pontos que tem chamado atenção: ganhar em dólar”, explica Felipe. “Se você tem um país de terceiro mundo que está passando por dificuldade de desemprego e inflação, as pessoas vão olhar para fora para buscar outra oportunidade. O mercado de cripto é atraente por isso.”
“Todo mundo quer ganhar e ficar rico rápido. Eu acredito que a questão da crise econômica, da pandemia, e da crescente necessidade da população encontrar alternativas para conseguir renda tem pesado muito. É a promessa de ganhar dinheiro fácil em um cenário de empregos precários, estagnação econômica e inflação crescente”, avalia Everton. “É isso que leva as pessoas para construir bolhas financeiras. Toda crise teve algum tipo de ativo que supostamente ia poder fazer gerar riqueza rapidamente. Com certeza alguém fica rico com isso, mas achar que todo mundo vai ficar rico com isso é ilusão”.
Lucas Viera está empolgado para o metaverso de NFTs (Foto: acervo pessoal)
Para Everton, esse é o maior problema: você não sabe que uma bolha é uma bolha até ela estourar. “Existe euforia sobre isso e, portanto, existe interesse e demanda e todos os ingredientes para que o cenário especulativo se desenvolva. O interesse agora foi reforçado após o anúncio do metaverso pelo Facebook. As pessoas estão pobres. A gravidade da situação econômica, todo mundo passando perrengue e, cada vez que você abre o YouTube, tem lá uma propaganda sobre como ganhar rapidamente 300% do seu investimento e em dólar. Isto está sendo propagandeado, toda essa cultura, e isto aliado à situação socioeconômica. As pessoas estão vendendo esperança”, aponta.
Enfim, o economista crê que, assim como não podemos vislumbrar, ainda, o metaverso na prática, também não podemos visualizar os novos desafios que ele vai impor. Em primeiro lugar, há a crescente demanda por hardware e energia. As mineradoras de Bitcoin consumiram mais energia ano passado que toda a Argentina, segundo o Cambridge Bitcoin Electricity Consumption Index.
Outra, é a legislação, que hoje não existe. “A regulamentação chega atrasada porque as inovações ocorrem muito rapidamente e com grande flexibilidade. É de se esperar que, conforme a inovação envolva cada vez mais pessoas, e tem mais gente e ativos em risco, aí a intervenção do poder público pode ser necessária”, conclui Everton.
Outro tropo marcante do cyberpunk é a inoperância do poder público frente ao poder e alcance das megacorporações, inclusive no ambiente virtual. A realidade é poluída por outdoors neon, como em Blade Runner (1983), e muito do cotidiano é conduzido fora da lei, sob a égide de um capitalismo descontrolado.
No final de Neuromancer, o hacker Case consegue libertar a inteligência artificial Wintermute, que lhe diz não ser mais Wintermute e sim o próprio ciberespaço, a própria matrix. Para onde isto te leva?, pergunta Case. “A lugar nenhum. A todos os lugares. Eu sou a soma total das obras, todo o espetáculo.”