Para adicionar atalho: no Google Chrome, toque no ícone de três pontos, no canto superior direito da tela, e clique em "Adicionar à tela inicial". Finalize clicando em adicionar.
Em obra lançada no ano de 2003 sob o título de “Gênio - Os Autores mais Criativos da História da Literatura”, Harold Bloom, ex-professor de literatura de Yale falecido há quase um ano, apresenta uma centena de autores que em sua perspectiva representam o conceito de genialidade que ele considerava ainda funcional sob o ponto de vista da estética e da originalidade. Nesse trabalho, Bloom se serve do conceito de literatura articulado pela cultura alemã, que por “Literatur” compreende toda e qualquer produção escrita, reservando o termo “Dichtung” para a literatura imaginativa propriamente dita, segundo informa Antonio Candido em “O Estudo Analítico do Poema”.
Assim, ao lado de nomes exponenciais como o inglês William Shakespeare, o florentino Dante Alighieri, o espanhol Miguel de Cervantes e o brasileiro Machado de Assis, considerado pelo autor como o maior representante afrodescendente da “Dichtung” em toda a história literária humana, comparecem também representantes ligados ao conceito mais extenso de “Literatur”, que por suas inegáveis qualidades no contexto da cultura universal fizeram jus, segundo a apreciação do renomado crítico estadunidense, à inserção em “Gênio...”.
Desse número pertencente à literatura em sua mais vasta acepção consta o nome de Aurelius Augustinus Hipponensis, ou Aurélio Agostinho de Hipona, mais conhecido na cultura popular como Santo Agostinho. Harold Bloom justifica a escalação do bispo de Hipona em sua galeria de gênios nestes termos: “Santo Agostinho foi um escritor extraordinário, intelectual formidável, e o mosaico de gênios aqui proposto não pode dispensá-lo”. Ainda conforme Bloom, “a originalidade de Agostinho é responsável pela invenção da autobiografia”, cujo exemplar canônico do gênero é a sua obra “Confissões”.
Nesta obra de cunho autobiográfico, o santo católico apresenta intuições decisivas e fundamentais acerca de questões como o tempo e a memória, que até hoje ainda sustentam estudos e pesquisas entre investigadores de diversas frentes do saber. Santo Agostinho seria, na análise bloomiana, o primeiro grande teórico da leitura, sendo ele mesmo um leitor incomparável. O crítico norte-americano vê o santo africano como uma espécie de professor de literatura no recuado século em que viveu e ministrou cursos para a elite intelectual do império romano antes de sua conversão.
Embora Harold Bloom não mencione esse dado particular, em “Confissões” o leitor pode perceber verdadeiros insights antecipatórios de temas que seriam tratados muitos séculos depois por disciplinas inexistentes à época agostiniana, como é o caso da Linguística e suas preocupações sobre a “faculdade da linguagem” da corrente gerativista chomskyana.
No âmbito da vasta produção de Agostinho, “Confissões” e “A Cidade de Deus” se constituem como as suas principais obras, que integraram um conjunto que foi bastante extenso, tratando de temas teológicos, filosóficos e retóricos.
A TEOFANIA EM DOIS GÊNIOS DE BLOOM
Além de Santo Agostinho, Harold Bloom elenca outros nomes singulares da “Literatur” para a composição do seu panteão centenário. É o caso, por exemplo, de Maomé, o profeta do islã, uma das maiores religiões do mundo. Sobre esse nome singular, afirma o estudioso da literatura: “Maomé não sabia ler nem escrever, e merece ser considerado um dos maiores poetas prosadores do mundo, inserido em uma tradição estritamente oral”. Informa Bloom que a partir dos 40 anos de idade Maomé passou a ouvir a voz do Anjo Gabriel, que lhe ditava o texto do “Alcorão” como intermediário direto de Deus, ou Alá.
Sobre a particularidade de inserir Maomé em um trabalho de registro canônico literário, Harold Bloom se mostra ciente das complexidades da empreitada: “Muitos de nós estamos habituados a ler a ‘Bíblia como literatura’, o que é inaceitável a judeus religiosos e cristãos devotos. Quero aqui propor o ‘Alcorão como literatura’, o que é ainda mais inaceitável a muçulmanos fiéis”. Neste contexto, o ensaísta considera o livro sagrado do islã como um dos mais belos poemas jamais produzidos, ressaltando que certamente só pode ser apreciado integralmente em árabe e não em qualquer outra língua, por mais primorosa que seja a tradução, opinião compartilhada por Mansour Chalita, um dos tradutores do “Alcorão” ao português.
Tanto em Santo Agostinho quanto em Maomé um tópico do sagrado, a teofania (visão de Deus), é abordado em instigante homologia que referenda a inserção de ambos os autores no panteão bloomiano. Em “A Cidade de Deus”, escreve Agostinho: “Não nos admiremos de que Deus, embora invisível, segundo as Escrituras, tenha com frequência aparecido visivelmente aos patriarcas. O som que o pensamento concebido no segredo da inteligência produz fora não é o próprio pensamento; assim também a forma sob a qual se manifestou Deus, invisível por natureza, é qualquer outra coisa, menos Deus. Contudo, é Ele que, sob tal forma, se deixa ver, como é o pensamento que no som da voz se faz ouvir”.
Ao tratar da dualidade do signo linguístico em significante e significado, Ferdinand de Saussure, um dos fundadores da moderna Linguística, definirá o segundo termo como “imagem acústica”, o que instaura instigante homologia conceitual com a proposição de Santo Agostinho. O “Alcorão”, por sua vez, ao tratar da teofania registra as palavras do Anjo Gabriel, intermediário de Deus, registradas por Maomé: “E a nenhum mortal é dado que Deus lhe fale, exceto por revelação ou por detrás de um véu ou por intermédio de um mensageiro enviado para transmitir o que Deus determinar. Ele é o Altíssimo, o Sábio”.
A comparação das palavras de Santo Agostinho com as palavras do anjo que fala a Maomé pode ser bastante sugestiva, apresentando concordâncias singulares oriundas de duas fontes culturalmente distintas para um tema teológico recorrente. O conceito alemão de literatura se mostra, portanto, no caso de “Gênio - Os Autores mais Criativos da História da Literatura”, altamente operacional, pondo em evidência a acuidade intelectual de que Harold Bloom era dotado.
*Gismair Martins Teixeira é Pós-Doutorando em Ciências da Religião pela PUC-GO; Doutor em Letras e Linguística pela Faculdade de Letras da UFG; professor do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte, da Seduc-GO.