Entre os mais influentes da web em Goiás pelo 14º ano seguido. Confira nossos prêmios.

Envie sua sugestão de pauta, foto e vídeo
62 9.9850 - 6351

Sobre o Colunista

Eliane de Carvalho .
Eliane de Carvalho .

Eliane de Carvalho é jornalista e mestre em Rel. Intern. Foi repórter na CBN e em programas de TV da Globo, Band e Cultura; comandou programa de entrevistas na TV Câmara SP; apresentadora de telejornal na TV Alesp e correspondente do SBT, na Espanha. / jornalistas@aredacao.com.br

Inquietudes

Ódio ao feminino

| 02.08.25 - 15:36 Ódio ao feminino (Foto: reprodução)

"Enciumado", "descontrolado", "inconformado com o término", "drogado", “alcoolizado", “um surto”. São tantas as expressões usadas ao longo dos anos, dos séculos, para justificar crimes bárbaros contra as mulheres. 
 
“O comportamento dela levou à agressão”. Culpar a vítima pela violência sofrida também é um argumento comumente utilizado pelo agressor. Mas a culpa não é da vítima. Ninguém deve ser responsabilizado pela violência que sofreu.
 
A violência sistemática contra as mulheres, muitas vezes, atinge a forma mais aguda e termina em morte. Mas o assassinato é a ponta do iceberg e requer um olhar mais profundo. Normalmente, quando a morte acontece, uma série de violências já vinha ocorrendo.
 
As humilhações, as críticas, as exposições públicas são formas de violência moral. As ameaças, intimidações, o cerceamento da liberdade de ir e vir são violências psicológicas. Forçar a ter relações sexuais e impedir a mulher de levar adiante uma gravidez são violências sexuais. A violência contra as mulheres pode ter muitas caras. 
 
E desfigurar o rosto de uma mulher é uma das formas mais cruéis de violência. “Sua exposição constante e de difícil encobrimento tornam a imagem pessoal um fardo. Um rosto deformado passa a carregar um estigma que afasta oportunidades de trabalho, de afeto, de pertencimento. É por isso que, na violência contra a mulher, a intenção do agressor nem sempre é matá-la, mas silenciá-la socialmente, de atribuir-lhe um "atributo profundamente depreciativo" e inviabilizar assim, as suas futuras relações sociais. Um assassinato simbólico”, escreveu a socióloga, Isabelle Anchieta, em seu perfil no Instagram, nesta semana, ao analisar a forma como Juliana Garcia dos Santos foi brutalmente agredida, com 61 socos no rosto, pelo namorado, Igor Cabral, na cidade de Natal, no dia 26 de julho. As imagens foram gravadas pela câmera de segurança do elevador, onde o casal estava, viralizaram nas redes sociais e chocaram o país.
 
O ódio ao feminino, tem raízes históricas na desigualdade de gênero. Dito em outras palavras, nas relações desiguais de poder entre os gêneros masculino e feminino, que são resultado de construções sociais e culturais. Ao longo da história, papéis foram atribuídos às mulheres e aos homens e condicionaram a sociedade a considerar certas atividades, tarefas e responsabilidades como masculinas e femininas. Papéis diferentes para cada gênero, que alimentam discriminações e violências por suas características hierárquicas. 
 
É preciso entender a origem dessas desigualdades para desconstruir a cultura de discriminação e violência. As discriminações são justificadas, muitas vezes, pelas características físicas diferentes entre mulheres e homens e com isso ganham um caráter natural. Um exemplo claro é como a capacidade reprodutiva das mulheres é usada para atribuir a maternidade como o principal papel feminino e delimitar seu espaço de atuação ao ambiente doméstico. Quando as distribuições desiguais de poder são vistas como consequência das diferenças físicas entre mulheres e homens, tidas como naturais, as desigualdades e discriminações são naturalizadas.
 
Crime de ódio 
A expressão máxima da violência é o assassinato. O crime de ódio é um conceito que surgiu, na década de 1970, para reconhecer e dar visibilidade a esses homicídios, que muitas vezes envolvem violência sexual seguida de assassinato, tentado ou consumado, e quando ainda  há tortura e mutilação dos órgãos sexuais ou partes do corpo associadas ao feminino, revelam a desumanização e o ódio em relação à condição feminina. É importante frisar que não são eventos isolados, repentinos ou inesperados. Ao contrário, fazem parte de um processo contínuo de violências.
 
A partir dos anos 2000, este conceito passou a ser incorporado às legislações de diversos países da América Latina. No Brasil, a Lei Maria da Penha, criada em 2006, definiu as diferentes formas de violência contra a mulher, desde as agressões físicas, psicológicas, sexuais, morais, até patrimoniais, ocorridas no ambiente doméstico, familiar ou  em qualquer relação íntima. Estabeleceu  ainda  mecanismos para coibir estas violências, como as medidas protetivas e o atendimento especializado. 
 
Quase uma década depois, em 2015, foi criada a lei do feminicídio, que definiu o assassinato violento de uma mulher, motivado por sua condição de mulher, no âmbito doméstico, com pena de 12 a 30 anos de reclusão. Em 2024, outra lei elevou a pena para 20 a 40 anos. É um crime hediondo, o que significa que não há o direito ao pagamento de fiança, indulto e anistia e a pena é em regime fechado. As duas leis são complementares. Enquanto a Maria da Penha é um marco legal para a proteção da mulher contra a violência doméstica, a lei do feminicídio tipifica e qualifica este tipo de crime e dá mais rigor a pena por homicídios motivados por gênero.
 
Mas nem todo feminicídio é cometido por companheiros e ex-companheiros, no ambiente doméstico. A lei inclui ainda a violência praticada por desconhecidos, em que a relação íntima não está configurada, como no caso de estupros coletivos e assassinatos de quatro adolescentes, em Castelo do Piauí, em 2015, que ficou amplamente conhecido. As mortes violentas de mulheres por razões de gênero acontecem no âmbito público e privado, em circunstâncias e cenários diversos. Também é importante destacar que os homicídios de mulheres nem sempre são por razões de gênero ou necessariamente um feminicídio. 
 
Até 2023, os homens podiam alegar a tese de legítima defesa da honra para justificar o assassinato de mulheres por traição e adultério e serem absolvidos em casos de feminicídio. Mas em agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal proibiu o uso da tese por unanimidade. 
 
O Escritório da ONU Mulheres no Brasil em parceria com a Secretaria de Política para as Mulheres formulou as Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres - Feminicídio. O documento oferece ferramentas para identificar as razões de gênero durante a análise das circunstâncias do crime, as características do agressor, da vítima e do histórico de violência e assim contribuir com a aplicação da lei.
 
Precisamos ter em mente os deveres do poder público e os direitos das vítimas. O Estado tem a responsabilidade de formular medidas de responsabilização, proteção, reparação e prevenção. Segundo especialistas, as políticas de prevenção são essenciais para atacar as raízes do problema. 
 
Apesar do feminicídio ser um crime evitável, vimos a publicação recente do Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelar que mesmo com a redução de 5,4% dos homicídios, no país, em 2024, os casos de feminicídio aumentaram em 0,7% e atingiram o maior número, desde a tipificação do crime, em 2015. Foram 1492 mulheres assassinadas, o que representa quatro mortes por feminicídio por dia. Na maioria dos casos, as vítimas são mulheres negras, entre 18 e 44 anos. Houve um aumento significativo dos feminicídios de adolescentes, a maior parte dos crimes ocorreu nas casas das vítimas, com arma branca e por companheiros e ex-companheiros. Foram 88 mil vítimas de estupro, mais que um estádio do Maracanã lotado, só no ano passado. A violência de gênero segue uma trajetória distinta da criminalidade geral no país e isso não é obra do acaso.

Comentários

Clique aqui para comentar
Nome: E-mail: Mensagem:
  • 02.08.2025 18:44 Claudia Gelernter

    Ótimo artigo! Traz um amargo na boca e aperto no coração, mas se faz necessário saber para refletir e alterar este mundo repleto de desigualdades e violências. Obrigada, Eliane, por escrever com tanta propriedade sobre um assunto que nos impacta tanto!

Sobre o Colunista

Eliane de Carvalho .
Eliane de Carvalho .

Eliane de Carvalho é jornalista e mestre em Rel. Intern. Foi repórter na CBN e em programas de TV da Globo, Band e Cultura; comandou programa de entrevistas na TV Câmara SP; apresentadora de telejornal na TV Alesp e correspondente do SBT, na Espanha. / jornalistas@aredacao.com.br

Envie sua sugestão de pauta, foto e vídeo
62 9.9850 - 6351