Carolina Pessoni
Goiânia - Um dos raros endereços de Goiânia que resistiu ao tempo sem mudar de nome ou de lugar é o Zé Latinhas, localizado na Rua 8, no Centro da cidade. Fundado em 1967, é reconhecido como uma das casas gastronômicas mais antigas em funcionamento ininterrupto na cidade.
Segundo o livro Rua 8, Centro: Pioneiros e Lazer – Goiânia-Goiás, décadas de 1940 a 1970, o restaurante ganhou fama ainda no fim dos anos 1960 e 1970, quando sua canja se tornou remédio certeiro contra a ressaca de boa parte da boemia goianiense. O nome nasceu do apelido de um dos sócios fundadores, e logo se consolidou como referência gastronômica do Centro, atendendo políticos, artistas, hóspedes dos hotéis da região e frequentadores de cinemas e teatros.
Foi na década de 1980 que a família Rosa da Silva entrou em cena. “Funcionou uns 15 anos com o dono original, e meu avô comprou e resolveu manter o nome e a estrutura. Ele veio do interior para trabalhar com os filhos”, conta Áureo Rosa, atual proprietário. Com a morte do avô, em 1995, o comando passou definitivamente aos pais. “Sempre mantendo o nome e com o mesmo formato.”
Bar foi fundado em 1967 e funciona no mesmo endereço até hoje (Foto: Arquivo pessoal)
O pai de Áureo, Vanderval Rosa, relatou para o livro que chegou a cogitar mudar o nome, mas desistiu diante da tradição. “Pensei em mudar o nome, mas, em função dos pedidos de clientes, resolvemos manter a marca, tamanha a popularidade e aceitação.”
Os anos 1970 e 1980 foram marcados por noites intensas. “Era muito frequentado à noite. Tinha uma elite política que vinha muito, funcionava 24 horas, tinha o público dos cinemas e teatros”, recorda Áureo. Sua infância se mistura com a história do bar. “Todas as minhas fotos de criança, de bebê, são todas lá. Não tenho fotos em casa.
Mas, com a expansão de Goiânia para a periferia, o Centro perdeu força. “Em 2019 minha mãe faleceu, meu pai foi deixando de lado e veio a pandemia. Mantivemos aberto com marmitas, mas o bar estava por um fio. Vivi todo esse processo, de ver o Centro se esvaziando, o movimento diminuindo, e meus pais sem saber muito como lidar com isso”, lembra.
Áureo passou sua infância no Zé Latinhas, junto com os pais: "Não tenho fotos de infância em casa, só no bar" (Foto: Arquivo pessoal)
A virada começou em 2021. Formado em Arquitetura, Áureo sempre pesquisou o espaço urbano e o potencial da região. “Sempre gostei muito do Centro, minha história é aqui. Minha postura é de que o Centro não está abandonado por conta do poder público, mas porque tem que ter atividades para as pessoas.”
Com dois amigos, ele reformou o bar e apostou em uma nova fase. “Foi muito rápido. Em seis meses já recebíamos cerca de 5 mil pessoas na rua. Eu e meu amigo fazíamos de tudo: atendíamos no balcão, limpávamos, servíamos. De repente, já tínhamos 25 funcionários.”
O movimento da população voltar a frequentar a região também crescia e o projeto Ocupa o Centro, iniciado há cerca de um mês, confirmou tese do arquiteto dono de bar. “Esse projeto sempre foi uma demanda quase natural de fechar a rua para as pessoas ocuparem com esporte, lazer, cultura. Goiânia tem duas coisas que casaram muito bem ali: a cultura de bar de rua, de sentar na calçada, e esse Centro vazio. Quando as pessoas começaram a ocupar, fechar a rua passou a ser uma questão de segurança.”
Bar foi completamente reformado e mescla elementos da goianidade em sua decoração (Foto: Rodrigo Obeid/A Redação)
A transformação, para Áureo, vai além do negócio. “O que eu percebo é que esse movimento se consolidou. É comum em bares alternativos como o nosso ‘bombarem’ por um tempo e depois fecharem. Nossa intenção sempre foi fazer algo duradouro. Hoje, não se fala em ir a um bar específico, mas em ir para a Rua 8. Isso é inédito em Goiânia. Dá orgulho, até do ponto de vista acadêmico. O Centro ser visto como morto era quase uma regra na universidade, e eu dizia o contrário: só precisava ser olhado de outro jeito.”
O orgulho também está no cardápio. A campeã de vendas é a Coxa Creme. “Era muito tradicional em São Paulo. Adaptamos aqui e deixamos quase como uma coxinha só de frango, sem massa e muito cremosa. Vende tanto que temos um espaço específico só para armazenar.”
Quem acompanha esse movimento de fora percebe o impacto na cidade. O professor de educação física Éverton Lamare viu de perto o Centro mudar. Ele conta que frequenta os bares do Centro desde que veio morar em Goiânia, em 2008, e viu o movimento diminuindo ao longo dos anos.
Zé Latinhas voltou a ser ponto de encontro a partir de 2021 (Foto: Rodrigo Obeid/A Redação)
“Na década de 2010, o Centro foi ficando cada vez mais abandonado. O Zé Latinhas e a Rua 8 eu só passei a frequentar com assiduidade depois da pandemia. É muito positivo ver novos bares ocupando casarões antigos e, ao mesmo tempo, o Zé Latinhas, tão tradicional, seguir firme. O Centro é o bairro mais histórico e culturalmente rico da cidade”, exalta o professor.
Hoje, passados mais de 58 anos da inauguração, o Zé Latinhas não é apenas um bar: é um pedaço da memória da cidade, um símbolo da resistência e da vitalidade que volta a tomar conta da Rua 8. “Nunca deixei esse lugar fechar. Ele é histórico, faz parte da cidade e precisa ser valorizado”, resume Áureo.